Cheiro de livro novo

Por Flávio Dutra

Com os livros que produzi voltei a reviver a sensação que experimentava quando criança e recebia livros e cadernos novos no início do ano escolar. Hoje, ao abrir o pacote com os exemplares recém-chegados da gráfica, acariciar e folhear o livro, sou transportado à infância do menino que compartilhava seu cotidiano - e o material escolar - com mais sete irmãos.  Aqueles livros didáticos, especialmente, pareciam ter um cheiro só deles, um cheiro que não consigo descrever, mas está entranhado lá dentro, em uma gaveta do cérebro reservada às grandes emoções.

Tanto os livros escolares como os cadernos eram encapados para mais bem conservá-los. Para isso, dona Thélia, minha mãe, usava papeis de presente, guardados zelosamente dos aniversários e natais. Os livros, ai de quem riscasse neles porque seriam herdados, tantas vezes quantas fossem necessárias, pelo irmão que viria a seguir na série escolar. Os cadernos careciam de cuidados redobrados porque os professores exigiam que não tivessem orelhas - aquelas dobras nas pontas - e nem manchas de qualquer natureza. Isso era levado em conta pelos mestres na hora da nota. Mesmo que os livros fossem legados, ano a ano, sempre havia um ou dois adquiridos virgens e estes eram motivo da desmedida satisfação do jovem estudante. Tinham cheiro de livro novo!

Me gratifica saber que não estou sozinho nessa nostalgia. Em evento recente promovido pela Associação Riograndense de Imprensa/ARI o médico e escritor JJ Camargo revelou que seu avô lá na Vacaria providenciava grandes lotes dos lançamentos da Editora Globo e assim que os livros chegavam eram cheirados um a um. "Quem não valoriza o cheiro de livro novo, bom sujeito não é", afirmava o velho e letrado senhor, conforme relato rememorativo do neto. Voto com o avô, mas sem radicalismo quanto ao caráter dos insensíveis olfativos.

Cheirinho de livro novo, esse é um prazer que se multiplica quando o livro é de própria autoria. Por isso, sinto uma imensa pena dos autores que tem suas obras imersas nos e-books. E-books não têm cheiro. E não me venham com ciência, da mistura do papel e tinta, para explicar o que é memória afetiva e não resultado químico.

Acho mesmo que escrevo só para depois voltar a sentir o cheiro de livro novo dos livros da minha infância. Perdão pelo clichê: isso não tem preço.

Autor
Flávio Dutra, porto-alegrense desde 1950, é formado em Comunicação Social pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs), com especialização em Jornalismo Empresarial e Comunicação Digital. Em mais de 40 anos de carreira, atuou nos principais jornais e veículos eletrônicos do Rio Grande do Sul e em campanhas políticas. Coordenou coberturas jornalísticas nacionais e internacionais, especialmente na área esportiva, da qual participou por mais de 25 anos. Presidiu a Fundação Cultural Piratini (TVE e FM Cultura), foi secretário de Comunicação do Governo do Estado e da Prefeitura de Porto Alegre, superintendente de Comunicação e Cultura da Assembleia Legislativa do RS e assessor no Senado. Autor dos livros 'Crônicas da Mesa ao Lado', 'A Maldição de Eros e outras histórias', 'Quando eu Fiz 69' e 'Agora Já Posso Revelar', integrou a coletânea 'DezMiolados' e 'Todos Por Um' e foi coautor com Indaiá Dillenburg de 'Dueto - a dois é sempre melhor', de 'Confraria 1523 - uma história de parceria e bom humor' e de 'G.E.Tupi - sonhos de guri e outras histórias de Petrópolis'. E-mail para contato: [email protected]

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