Cheiro de Marmelo

Por Fernando Puhlmann

 "O Amor já matou mais

Que qualquer doença"

Rumpelstiltskin

A vida não é só "culo", se tiver coragem, uma hora dá "suerte". João ouviu essa frase quando ainda era piá, sentado em um mocho na sobra de um cinamomo, à beira da cancha de Tava que ficava atrás do bolicho do Seu Bino. Tarde quente, gauchada reunida, tomando canha e dando risada. A cena nunca saiu da sua cabeça, a frase muito menos. Toda vez que algo dava errado na vida, ele repetia para si a expressão, mesmo que não lembrasse quem a tinha dito.

Enquanto o fusca azul cortava a cidade em alta velocidade, ele pensava mais uma vez nela. Anita era bonita, moça da cidade, costumes diferentes, realidades financeiras bem distantes, mas o amor os aproximara. Vindo do interior, conhecera ela na Rua da Praia, na saída da matinê, vestido rosa, rodado, cabelo comprido e cheiro doce de marmelo. Foi amor à primeira vista. Ela também gostou do que viu, ele tinha certeza.

Os amigos não o encorajaram muito, ela era filha de militar. Coronel. Ele, um pobre atendente de balcão em uma ferragem na Voluntários da Praia, mas o amor é cego, não vê essas diferenças e a partir desse dia ela não saiu mais da sua cabeça.

Todos os domingos ele vestia a melhor roupa e se postava na saída do cinema, não demorava muito para que as meninas começassem a sair, ela sempre a mais bonita e elegante.

No terceiro domingo tomou coragem, quando ela passou ele a cumprimentou, aceno tímido, nervoso, ela riu, baixou a cabeça e seguiu.

Ele se encorajou, era visível que ela tinha gostado da iniciativa, a seguiu de longe para descobrir onde morava, ela entrou em uma casa grande na Duque de Caxias, as outras meninas continuaram. Ele descobrira o endereço da amada.

Passou a caminhar pela Duque, na esperança de encontrá-la, até que a viu de longe umas três vezes, mas estava sempre acompanhada de uma Dama de Companhia, não teve coragem de se aproximar. Mas sentia que ela o notara, que também tinha vontade de lhe falar, porém não havia oportunidade. Descobriu o seu nome com o bolicheiro da esquina, entre uma conversa e outra o homem contou o nome, a idade e que o pai era bravo, não permitia nenhum tipo de intimidade com ela, muito menos a aproximação de estranhos.

Mas João não era mais um estranho, já haviam se cumprimentado e mesmo sem se falar, trocado juras de amor em pensamento.

João resolveu se apresentar à família, os amigos disseram que ele estava surtando, João apenas riu, ninguém entende os apaixonados.

Sábado era dia de baile no Comercial, toda a sociedade de Porto Alegre estaria lá, ela com certeza iria, ele também, só faltava um detalhe, ele não era sócio do clube, mas o destino sempre torce pelo amor e ele tinha certeza que conseguiria entrar. Chegou na frente do clube, ficou esperando alguma chance, as famílias passavam pela porta e adentraram o hall, ele na calçada. Começou a ficar nervoso, não a vira ainda, mas sentia que viria. O tempo ia passando e ele já estava acreditando que o destino o abandonaria, então ela apareceu, linda, em um vestido azul claro, cabelo com coque, maquiagem leve. Vinha rindo, de braços dados a um rapaz vestindo farda militar de gala. A dor da traição explodiu em seu peito, como ela fizera isso com ele? E todas as juras de amor? E todos os olhares trocados com promessas de uma vida a dois. O sangue subiu, em dois passos ele estava à frente do casal, o rapaz que a acompanhava não entendeu de onde ele surgiu, Anita se assustou e recuou, traidora, covarde, mas dela ele cuidaria depois. Tentou acertar um soco no acompanhante que o "corneava" na frente de todos, errou o golpe, o outro era grande, forte e rápido, lhe derrubou com um chute e subiu em cima dele. João era pequeno, mas fora criado na rua, brigas faziam parte do seu dia a dia, consegui sair de baixo, ficar de pé e puxou a faca, a mancha vermelha coloriu o casaco branco, foi um golpe só, entre a segunda e terceira costela, direto no coração.

O alarido se espalhou, Anita gritava protegida pelo pai e por amigos que acudiram, João sentiu que ia levar a pior, correu, atravessou a praça em direção ao Cais do Porto, uma multidão atrás. Pulou no banco do carona de um fusca que estacionava, colocou a faca, ainda suja de sangue, no pescoço do motorista. 

- Toca. Foi a única palavra que disse.

Dali para frente só viu a cidade passar. 

A dor e o cheiro de marmelo que vinha dela o consumiam.

Autor
Sócio-cofundador da Cuentos y Circo, Puhlmann é um dos principais especialistas em YouTube do país, com um olhar focado em possibilidades de faturamento na plataforma e uma larga experiência em relacionamento com grandes marcas do mercado de entretenimento. Além de diretor de Novos Negócios da CyC, tem também no seu currículo vários canais no país, entre eles o do escritor Augusto Cury, do Gov Eduardo Leite, Natália Beauty e do Grêmio FBPA, sempre atuando como responsável pela estratégia de crescimento orgânico dos canais. Já realizou palestras sobre a nova Comunicação juntamente com diretores do YouTube Brasil como a abertura do 28º SET Universitário da Famecos-PUCRS, o YouPIX/SP e o Workshop YouTube Gaming Porto Alegre. Desde 2013, Puhlmann ministra cursos, seminários e oficinas sobre YouTube, tendo mentorado mais de 30 canais nos últimos anos.

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