Faca de Ponta

Por José Antônio Moraes de Oliveira

 

Naqueles tempos da guerra, tempos de sombras e incertezas, nossos pais se perguntavam qual seria o futuro de seus filhos.

Em um certo dia, a mãe inventou de me levar até uma tia que lia o futuro nas cartas do Tarô. O pai não gostava de videntes, que dizia serem da mesma raça das ciganas que cobravam para ler La Buena Dicha. Mas a mãe insistiu e lá fomos nós passear de bonde Teresópolis. 

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A Tia Julieta nos recebe com meio sorriso, serve um chá de gosto amarguento e passa a mão na minha cabeça. Nos acomodamos ao redor de uma mesinha coberta com pano roxo e com uma bola de cristal ao lado. Ela embaralha as cartas e as distribui na mesa em silêncio. Me remexo na cadeira, inquieto e um tanto medroso. Olho para a mãe, que me parece mais pálida do que costume. Depois de trocar e retrocar as cartas, a tia rabisca algo em um pedaço de papel, que dobra em oito e entrega para a mãe. Ao chegar em casa, ela tira da bolsa o bilhete da vidente, lê e relê o que está escrito, me olha, sorrindo sem graça. Enfia o papelucho no bolso do avental e vai cuidar do nosso café-da-tarde.          

Mais tarde, pergunto e repergunto, mas ela não me conta nada. Apenas recomenda:

"- Tenha cuidado com facas de ponta".

Na hora, não dei a mínima importância, mas mais tarde, lembrei do aviso da tia, quando corto a mão com meu canivete suiço que esquecera aberto no bolso. E para completar a dita profecia, no dia seguinte, uma faca de açougueiro escapa de minha mão e cai de ponta no chão, perto do meu pé. Quando conto para a mãe, ela solta um suspiro e diz que o que as previsões da Tia Julieta deviam ser levadas a sério, pois costumam acontecer.

Então revela um episódio antigo que a família não gostava de lembrar. Que a mesma Tia Julieta um dia alertou a família para evitar o número 2, mas que ninguém levou muito a sério, que devia ser uma fantasia ou estória para assustar crianças. Mas um dia, perto do Natal, correu a notícia que um bonde da linha Independência saíra fora dos trilhos na curva da Rua Pinto Bandeira e despencou ladeira abaixo, matando o motorneiro e ferindo vários passageiros.

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No dia seguinte, nosso espanto ficou ainda maior, quando o pai nos mostra a primeira página do Diário de Notícias com a foto do bonde tombado na esquina da Avenida Otávio Rocha. Era o bonde de número 2. 

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Autor
José Antônio Moraes de Oliveira é formado em Jornalismo e Filosofia e tem passagens pelo Jornal A Hora, Jornal do Comércio e Correio do Povo. Trocou o Jornalismo pela Publicidade para produzir anúncios na MPM Propaganda para Ipiranga de Petróleo, Lojas Renner, Embratur e American Airlines. Foi também diretor de Comunicação do Grupo Iochpe e cofundador do CENP, que estabeleceu normas-padrão para as agências de Publicidade. Escreveu o livro 'Entre Dois Verões', com crônicas sobre sua infância e adolescência na fazenda dos avós e na Porto Alegre dos velhos tempos. E-mail para contato: [email protected]

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