Naqueles tempos da guerra, tempos de sombras e incertezas, nossos pais se perguntavam qual seria o futuro de seus filhos.
Em um certo dia, a mãe inventou de me levar até uma tia que lia o futuro nas cartas do Tarô. O pai não gostava de videntes, que dizia serem da mesma raça das ciganas que cobravam para ler La Buena Dicha. Mas a mãe insistiu e lá fomos nós passear de bonde Teresópolis.
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A Tia Julieta nos recebe com meio sorriso, serve um chá de gosto amarguento e passa a mão na minha cabeça. Nos acomodamos ao redor de uma mesinha coberta com pano roxo e com uma bola de cristal ao lado. Ela embaralha as cartas e as distribui na mesa em silêncio. Me remexo na cadeira, inquieto e um tanto medroso. Olho para a mãe, que me parece mais pálida do que costume. Depois de trocar e retrocar as cartas, a tia rabisca algo em um pedaço de papel, que dobra em oito e entrega para a mãe. Ao chegar em casa, ela tira da bolsa o bilhete da vidente, lê e relê o que está escrito, me olha, sorrindo sem graça. Enfia o papelucho no bolso do avental e vai cuidar do nosso café-da-tarde.
Mais tarde, pergunto e repergunto, mas ela não me conta nada. Apenas recomenda:
?- Tenha cuidado com facas de ponta?.
Na hora, não dei a mínima importância, mas mais tarde, lembrei do aviso da tia, quando corto a mão com meu canivete suiço que esquecera aberto no bolso. E para completar a dita profecia, no dia seguinte, uma faca de açougueiro escapa de minha mão e cai de ponta no chão, perto do meu pé. Quando conto para a mãe, ela solta um suspiro e diz que o que as previsões da Tia Julieta deviam ser levadas a sério, pois costumam acontecer.
Então revela um episódio antigo que a família não gostava de lembrar. Que a mesma Tia Julieta um dia alertou a família para evitar o número 2, mas que ninguém levou muito a sério, que devia ser uma fantasia ou estória para assustar crianças. Mas um dia, perto do Natal, correu a notícia que um bonde da linha Independência saíra fora dos trilhos na curva da Rua Pinto Bandeira e despencou ladeira abaixo, matando o motorneiro e ferindo vários passageiros.
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No dia seguinte, nosso espanto ficou ainda maior, quando o pai nos mostra a primeira página do Diário de Notícias com a foto do bonde tombado na esquina da Avenida Otávio Rocha. Era o bonde de número 2.
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