In forma (06/03)
Por Marino Boeira

HERÓIS COM PÉS DE BARRO
Não dá para não lembrar novamente a frase de Bertolt Brecht - "Pobre povo que precisa de heróis" - vendo essa enorme campanha nacional para transformar o filme Ainda Estou Aqui num hino contra a ditadura e seu diretor e intérpretes em heróis nacionais.
O que mais chama atenção nessa verdadeira cruzada patriótica é o profundo desprezo de todos seus participantes pelos fatos históricos, pela importância do cinema como a grande arte do século e pelo esquecimento dos nomes dos que eram os inimigos do povo brasileiro até a pouco.
O filme, como todos sabem, conta a história de uma família que vive a tragédia da perda do pai, Rubens Paiva, preso e depois morto pelos militares que comandaram a ditadura brasileira. A ditadura, no caso é apenas o pano de fundo da história, que se concentra na tentativa da família e principalmente de Eunice Paiva de reconstruir a vida.
Deixando de lado um pouco a história do filme, vamos lembrar que ditadura era essa e quem a defendia e financiava. Foi uma ditadura de 21 anos, definida hoje pelos historiadores como civil-militar. A face exposta dela era representada pelos governos de generais, que começa com Castelo Branco e segue com Costa e Silva, uma Junta Militar, depois Médici, mais adiante Geisel e finalmente Figueiredo. Por trás deles estavam os representantes da versão civil da ditadura, os banqueiros, os latifundiários, os grandes empresários e a mídia. Entre eles, em primeiro lugar a Rede Globo e com menos exposição, como é do feitio do seu negócio, os bancos Bradesco e Itaú.
Por trás dessa ditadura de 21 anos, nenhum historiador sério deixou de registrar a presença dos Estados Unidos, diretamente em alguns momentos através do seu governo e da embaixada no Brasil e em outros, mais discretamente, mas visando o mesmo objetivo, as agências norte-americanas tipo USAID e CIA e num trabalho permanente a indústria cinematográfica de Hollywood vendendo o chamado "american way of life".
Agora que o filme Ainda Estou Aqui recebeu uma distinção na premiação do Oscar, ainda que não a maior de todas, é bom lembrar quem são os que estão por trás disso.
Em primeiro lugar a indústria cinematográfica norte-americana (Hollywood) precisa ampliar sua visibilidade e influência, depois que a televisão e agora as redes independentes de comunicação audiovisual ameaçam cada vez mais seu domínio. O mercado brasileiro é muito importante e deve ser cultivado. Uma premiação como o Oscar sempre ajuda.
Internamente a Rede Globo, que sempre apoiou o golpe de 64, transformou o filme agora numa vitória dos brasileiros e da democracia. Cinismo maior não poderia existir, mas isso ajuda sua inserção na vida das pessoas.
E os bancos?
São obviamente entidades sempre ligadas ao poder, seja ele qual for. Apoiaram a ditadura e agora apóiam o tal Estado Democrático de Direito. Mas não deixa de ser curioso, que o diretor do filme Walter Salles seja o herdeiro da família dona do Banco Itaú e que seu concorrente, o Bradesco, contrate como seu garoto-propaganda Selton Mello, que desempenha o principal papel masculino no filme.
Finalmente, quem pretende se beneficiar da divulgação do filme é o presidente Lula, que tenta desviar as críticas ao seu governo e já pensando nas eleições de 2026, busca apagar da memória das pessoas seu conselho para esquecer o período ditatorial. Quem gosta de cinema e não esquece os fatos históricos, se incomoda duas vezes: primeiro com o endeusamento de um filme banal e segundo, com a falsificação da história recente do Brasil criando heróis com pés de barro.