Ir ao teatro é que nem pegar o ônibus

Já escrevi aqui sobre a importância dos festivais de arte como impulsionadores da cultura, da cidadania e da autoestima das comunidades - sejam elas pequenas ou gigantescas, interioranas ou cosmopolitas. Pois a capital gaúcha está vivendo mais um desses eventos culturais capazes de catalisar e galvanizar práticas e percepções positivas na sociedade: o Festival Palco Giratório Sesc Porto Alegre. Até o próximo dia 26 de maio, a 13ª edição da mostra apresentará mais de 50 espetáculos e cem sessões artísticas - entre atrações de teatro, dança, circo, música, cinema e artes visuais, além de diversas ações formativas, como oficinas, seminário, encontros e bate-papos. Apresentam-se, em diversos espaços da cidade, um total de 48 grupos, incluindo coletivos e artistas locais e oriundos de 13 Estados - mais uma coprodução Brasil-França: o poético espetáculo "Gritos", da Cia. Dos à Deux. O bacana é que o festival oferece ingressos com valores acessíveis, a partir de R$ 10, além de atividades gratuitas.

Como sempre, o Palco Giratório proporciona à plateia porto-alegrense a oportunidade de assistir a montagens de alguns dos mais importantes grupos de teatro e de dança do Brasil - como, aliás, o Porto Alegre Em Cena tradicionalmente já realiza há 25 anos e o Porto Verão Alegre aos poucos vem fazendo em suas recentes edições. Um dos destaques deste ano do festival promovido pelo Sesc foi o Teatro da Vertigem: a companhia paulistana é conhecida por uma estética própria dentro do teatro de vivência ao utilizar como cena espaços públicos - uma igreja, um presídio e até um rio já se tornaram palco para seus espetáculos -, envolvendo o espectador nesse universo ao mesmo tempo familiar e recriado. Após mais de uma década sem se apresentar em Porto Alegre, o coletivo trouxe a peça "O Filho", que foi encenada no Ginásio do Sesc Protásio Alves.

A montagem é uma visão negativa e cruel da paternidade, inspirada na célebre "Carta ao Pai", de Kafka. Além de um elenco afinado e de talento, a montagem destacou-se pela cenografia: o público acomodava-se em cadeiras, poltronas e sofás espalhados em um amplo galpão entulhado de objetos velhos, desgastados e quebrados. O resultado é uma potente e impactante metáfora visual da família como um caótico amontoado de rejeitos e coisas obsoletas.

Por falar em ocupação de lugares de circulação e uso cotididanos pela população com performances cênicas, outro ponto alto desse começo de Palco Giratório 2018 foi "Entrepartidas", do Teatro do Concreto (DF). De maneira similar à montagem uruguaia "Barro Negro", há 27 anos em cartaz em Montevidéu, "Entrepartidas" colocou o público dentro de um ônibus, que circulou pela cidade apanhando os atores do elenco e levando os espectadores para as locações onde as diversas cenas se desenrolaram. O espetáculo é um "tour de force" de quase três horas de duração da companhia brasiliense, que soube aproveitar os cenários noturnos do Centro Histórico, alçando Porto Alegre à condição de personagem da série de encontros, desencontros e imagens cênicas do enredo. Criado em 2003, o Teatro do Concreto tradicionalmente incorpora o entorno urbano em suas montagens, estabelecendo por meio da encenação teatral diálogos com os significados simbólicos e a realidade da cidade.

Se tirar a cena de dentro do teatro e levá-la para a rua é uma forma direta e eficaz de literalmente jogar a arte na cara da cidade e de seus moradores, a valorização da produção local também ajuda a encurtar o caminho entre artistas e espectadores - ligando as pontas do processo criativo que confere o sentido último de uma obra. Assim, como parte da lógica agregadora comum aos festivais - é notória a capacidade que esses eventos coletivos têm de chamar atenção e mobilizar o público em potencial -, o Palco Giratório reserva um lugar especial às montagens gaúchas no centro de sua programação. Peças recentemente premiadas como "Medeia Vozes", "Imobilhados", "Cadarço de Sapato ou Ninguém Está Acima da Redenção", "Prata-Paraíso" e "Ícaro" e novos espetáculos do tipo "Espalhem Minhas Cinzas na Eurodisney", "Tremor", "Inimigos na Casa de Bonecas", "Ruídos" e "Pequeno Trabalho para Velhos Palhaços" formam um rico panorama da cena regional - que, colocada lado a lado de produções nacionais consagradas na grade de atrações do festival, não deixa dúvidas quanto à qualidade do teatro e da dança que vêm sendo feitos por aqui.

O cardápio de opções do Palco Giratório é farto e variado - e, dependendo do caso, nem se precisa ir ao teatro para ver uma boa peça. Você tem então até o dia 26 para colocar de vez as artes cênicas nas tarefas do seu dia a dia - porque assistir a um bom espetáculo deveria ser tão natural quanto tomar café, pagar a conta no banco ou pegar o ônibus.

Confira a programação do festival no site https://www.sesc-rs.com.br/palcogiratorio.

Autor
Jornalista e crítico de cinema, integrante da Associação Brasileira de Críticos de Cinema (Abraccine). Editou de 1999 a 2017 a coluna Contracapa (artes, cultura e entretenimento), publicada no Segundo Caderno do jornal Zero Hora. Neste período, também atuou como repórter cultural do caderno de variedades de ZH. Apresentou o Programa do Roger na TVCOM entre 2011 e 2015 e é é autor do livro "Mauro Soares - A Luz no Protagonista" (2015), volume da coleção Gaúchos em Cena, publicada pelo festival Porto Alegre Em Cena. Foi corroteirista da minissérie "Tá no Sangue - Os Fagundes", veiculada pela RBS TV em 2016. Atua como repórter e crítico de cinema no Canal Brasil.

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