Leituras de ouro

Por Vieira da Cunha

Está centrada em dois cronistas, contistas e novelistas de primeira grandeza boa parte de minha formação intelectual, dos temas que abracei, da postura política que adotei. Nelson Rodrigues e Sérgio Jockyman são os autores destas duas penas douradas. 

O contato com ambos pode-se dizer que foi precoce, com cerca de 10, talvez 11 anos de idade. O pai, jornalista, trazia rotineiramente para casa os principais diários que circulavam no Rio Grande Sul nos anos cinquenta e sessenta do século passado. Eu o aguardava ansiosamente, muito mais pelo que carregava debaixo do braço do que por alguma saudade de quem eu já havia visto poucas horas antes, no café da manhã ou mesmo no almoço. 

Era um prazer renovado diariamente folhear os jornalões Correio do Povo e Diário de Notícias e o tabloide Folha da Tarde, e neles tinha duas leituras obrigatórias, indispensáveis mesmo. No Diário, Sérgio Jockyman com a coluna identificada como Bola Branca, Bola Preta. Na Folha, Nelson Rodrigues e sua A vida como ela é.

Lembro bem, duas ou três vezes, ao meu ver afundado em uma destas leituras, o pai, que todos no jornal que dirigia conheciam por Chefe Paulo, fazia o alerta. Se o ato de leitura estviesse concentrado na coluna de Nelson Rodrigues, que ocupava página inteira do tabloide, eu deveria ficar atento para "certos exageros" em relação a sexo e costumes. Se o foco estivesse voltado para o espaço do Jockyman, atenção, ele é ateu "e ataca muito nossas convicções cristãs". 

Estas eram as únicas ressalvas; nada contra o posicionamento político de um ou de outro, nada contra o ceticismo exacerbado do Nelson ou sua obsessão por obscenidades e críticas à população suburbana, nada sobre as ironias e deboches do Jockyman.

Nea leitura do pernambucano de alma carioca, me deliciava com os contos sempre surpreendentes, sempre narrados no seu estilo saboroso e provocador ao mesmo tempo, com suas obsessões por temas delicados ou polêmicos, como o adultério ou a morte.

O gaúcho Sérgio Jockyman era dono de outro estilo, mas tinha uma certa afinidade com Nelson, expressa em seu ceticismo e na ironia com que tratava assuntos do cotidiano. Trabalhou em rádio, jornal e televisão, escreveu poemas, romances e peças teatrais, e ensaiou passos na política, perdendo quando se candidatou a vereador, mas elegendo-se mais tarde deputado estadual por um mandato. Irônico e ferino, apresentava também comentários diários no rádio. Tinham o sabor de crônicas do cotidiano, que encerrava com um bordão que ainda hoje repito em certas ocasiões: "Pensem nisso, enquanto lhes digo? até amanhã".

O ato diário de devorar os textos daqueles dois expoentes da crônica em jornal ajudou o pivete a se decidir de vez pela profissão de jornalista. Para, oh, destino cruel, persistir por anos e anos na vã tentativa de criar textos minimamente saborosos como os de seus inspiradores.

Autor
José Antonio Vieira da Cunha atuou e dirigiu os principais veículos de Comunicação do Estado, da extinta Folha da Manhã à Coletiva Comunicação e à agência Moove. Entre eles estão a RBS TV, o Coojornal e sua Cooperativa dos Jornalistas de Porto Alegre, da qual foi um dos fundadores e seu primeiro presidente, o Jornal do Povo, de Cachoeira do Sul, a Revista Amanhã e o Correio do Povo, onde foi editor e secretário de Redação. Ainda tem duas passagens importantes na área pública: foi secretário de Comunicação do governo do Estado (1987 a 1989) e presidente da TVE (1995 a 1999). Casado há 50 anos com Eliete Vieira da Cunha, é pai de Rodrigo e Bruno e tem cinco netos. E-mail para contato: [email protected]

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