Mamis: sete anos de saudades intensas

Por Márcia Martins

Mirthô era uma pessoa de múltiplas qualidades. Todas desenvolvidas ao longo dos 76 anos (esta idade da mamãe quando morreu). Tinha habilidades admiráveis no cuidado com os quatro filhos sobreviventes: Sílvia, eu, Nando e Dédi (ela perdeu a primeira filha Marisa, aos nove meses), na relação com suas amigas, no trato com os familiares, na dedicação à sociedade espiríta onde trabalhou e, principalmente no carinho dedicado aos netos e netas (Rafael, Camila, Gabriela - minha filha - e Lucas, que conviveu pouco tempo com a avó). Mas tenho certeza que suas qualidades mais marcantes eram o carinho em tudo o que fazia para filhos (as), netos (as) e parentes adotados e a disponibilidade para auxiliar no cuidado com os netos (as).

Sempre que podia e até quando parecia impossível, Mirthô se esmerava em distribuir afeto os filhos (as) e o resto da prole. Tal sentimento era notado nas roupas de tricô que tecia com paciência para agasalhar eu e meus irmãos (quando ainda erámos pequenos e não torciámos o nariz para a produção local), no preparo de suas iguarias, sempre desfilando com maestria o manejo das panelas e demais utensílios com gestos de MasterChef e na preocupação em arrumar roupas para a neta Gabriela, nos cinco anos em que moramos com ela no apartamento da Rua Doutor Barros Cassal, brilhar nas festas da creche, da colônia de férias e do colégio.

Lembro com uma exatidão absurda de duas ocasiões que marcaram a minha memória em que Mirthô se superou na dedicação em ajudar Gabriela a vestir-se para os seus pequenos compromissos sociais da infância. Em algum janeiro de 2003 ou 2004 e Gabriela tinha uma festa do ridículo na colônia onde passava as férias do verão. A mãe simplesmente deixou a Gabriela a guria ridiculamente mais linda e tudo o mais que alguém jamais imaginaria. De chapéu de abas largas, óculos escuros grandes demais, xale bege, brincos extravagantes, uma sala cheia de pregas sei lá de quem, sapato de bico fino e batom de cor vinho. Não deu outra. Gabriela chegou da festa com o título de a mais ridícula, com direito a troféu e tudo.

Em outra vez, já estudante do Colégio Rosário, Gabriela apresentaria uma peça de teatro e precisava estar fardada com belas e impecáveis roupas de dormir. Pois a vó da minha filha só sossegou depois que encontrou, nas suas gavetas, até uma fita rosa de cetim para envolver os cabelos sedosos e longos da Gabriela, que encenou a peça com uma camisola rosa toda nova, um par de chinelos felpudo rosa e o lindo laço arrumado pela minha mãe, que, é claro, estava na plateia e aplaudiu euforicamente.

Há sete anos, mamis nos deixou, assim órfãos de tanto carinho, dedicação, afeto, família reunida, delícias gastronômicas, blusões e casacos de tricô, pratos congelados, como aquela lasanha com nozes que preparava quando se associou em um negócio de congelados com uma amiga dos meus irmãos. Estranho eu recordar da tal lasanha no universo incontável de delícias que mamãe cozinhava (bolinhos de bacalhau, torta de bolacha, pudim de leite condensado, galinha com farofa, as trufas, meus Deus!!!). Partiu num dia frio, gelado, sombrio, num cenário nebuloso. Jamais esquecerei daquele 4 de julho de 2011. Foi o dia mais triste da minha vida e quando, sem perceber, morri um pouco.

Desde lá, carrego parte do meu coração gelado, um pouco embrutecido de saudade, um tanto carente de carinho maternal, de afagos no sofá da sala, de telefonemas para saber as novidades do dia. Sei que parte do seu coração ainda pulsa e bate aqui, nas memórias, nas lembranças do seu afeto, nos retratos amarelados pelo tempo, nos sentimentos bons e generosos que ensinou aos filhos. Sete anos de saudades intensas e de uma vontade que ela escute que o meu amor é eterno.

 

Autor
Márcia Fernanda Peçanha Martins é jornalista, formada pela Escola de Comunicação, Artes e Design (Famecos) da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), militante de movimentos sociais e feminista. Trabalhou no Jornal do Comércio, onde iniciou sua carreira profissional, e teve passagens por Zero Hora, Correio do Povo, na reportagem das editorias de Economia e Geral, e em assessorias de Comunicação Social empresariais e governamentais. Escritora, com poesias publicadas em diversas antologias, ex-diretora do Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Rio Grande do Sul (Sindjors) e presidenta do Conselho Municipal dos Direitos da Mulher de Porto Alegre (COMDIM/POA) na gestão 2019/2021. E-mail para contato: [email protected]

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