O amor tem todos os sexos

Por Roger Lerina

Mais do que a tolerância à diversidade sexual, o que aproxima 'Entre-Laços' (2017) e 'Desobediência' (2017), dois dos melhores filmes em cartaz atualmente na Capital, é o amor - e não apenas aquele sensual: em ambas as histórias, também o afeto materno e a amizade são atravessados pela identidade de gênero. Se tematizar os relacionamentos sentimentais homossexuais é sempre imperioso, é igualmente bem-vindo quando o cinema mostra na tela também outros aspectos e pontos de vista de personagens gays - o que é justamente o caso desses dois longas.

Vencedor de prêmios cinematográficos voltados à temática LGBTQ como o Teddy Bear do Festival de Berlim e o troféu do público no Mix Brasil, o japonês 'Entre-Laços' é um sensível melodrama que acompanha uma garota de 11 anos tentando construir uma família depois de ser virtualmente abandonada pela mãe - situação que lembra a enfrentada pelos pequenos irmãos de 'Ninguém Pode Saber' (2004), do também nipônico Hirokazu Kore-eda. Depois que a instável e irresponsável mãe some, a pequena Tomo (Rin Kakihara) busca abrigo na casa do tio Makio (Kenta Kiritami), que vive com a transexual Rinko (Tôma Ikuta), uma enfermeira que trabalha em um asilo de idosos. A companheira de bom coração do tio recebe a menina com carinho e atenção, estabelecendo rapidamente um laço maternal com Tomo, vencendo o estranhamento inicial da guriazinha. O peculiar arranjo familiar, porém, desperta preconceito e desconfiança no meio onde os personagens circulam - ao mesmo tempo em que Tomo tenta compreender um coleguinha de escola atormentado por sua homossexualidade reprimida.

Naoko Ogigami, diretora de 'Entre-Laços', escreveu e dirigiu todos os seus filmes até agora, que foram classificados no Japão como sendo 'iyashi-kei eiga' - algo do tipo 'filmes que proporcionam cura emocional', de tom leve. Mesmo que a abordagem da realizadora a respeito da complexidade das relações afetivas modernas não seja tão incisiva quanto a dos filmes do conterrâneo Kore-eda - que acaba de ganhar o Festival de Cannes com 'Shoplifters', mais um drama agridoce de pais e filhos dirigido por ele -, Naoko consegue contar em 'Entre-Laços' uma bela e tocante fábula a respeito das novas configurações familiares e da empatia com a alteridade. O tricô, praticado no começo do filme por Rinko e depois também por Makio e Tomo, funciona como uma eficaz metáfora sobre a permanente necessidade de entrelaçar vínculos a fim de criar tramas que liguem as pessoas - sejam amantes, parentes, amigos ou, no caso, mãe e filha improvisadas.

Já 'Desobediência' é dirigido pelo chileno Sebastián Lelio, vencedor do Oscar de filme estrangeiro deste ano por 'Uma Mulher Fantástica' - drama estrelado pela atriz trans Daniela Vega. Em seu novo filme, o diretor e roteirista Lelio coloca em tensa interação três personagens ligados por um passado de amizade e paixão. Avisada da morte do pai que não vê há anos, Ronit (Rachel Weisz) sai de Nova York e volta a sua Londres natal para o funeral. A chegada inesperada da cosmopolita fotógrafa agita a suburbana e ortodoxa comunidade judaica onde seu pai era um respeitado rabino. O retorno de Ronit surpreende especialmente seu primo Dovid (Alessandro Nivola), candidato natural a ocupar o cargo de novo líder religioso. Mas o espanto é dos dois lados: Ronit descobre que o jovem rabino casou-se com Esti (Rachel McAdams), amiga de infância de ambos - e com quem ela teve um secreto romance na juventude. O reencontro entre as duas mulheres vai reavivar a paixão e colocar em choque as diferentes opções de vida e visões de mundo daqueles que optaram por se adaptar e integrar ao meio no qual cresceram e de quem decidiu romper com a tradição.

'Desobediência' vai esticando a corda dramática da narrativa à medida que o desejo entre Ronit e Esti vai se tornando cada vez mais incontornável e ao mesmo tempo ameaçador do status quo daquele conservador ambiente - enquanto todos se preparam para a despedida do rabino morto e a aclamação de seu sucessor. Um dos méritos do filme é não fazer julgamentos peremptórios a respeito das atitudes de seus protagonistas, evitando simplificar conjunturas e situações essencialmente complexas - com destaque para o sensível esboço de Dovid, figura atormentada pelas próprias contradições e que não se encaixa no papel de mero vilão no triângulo amoroso que se encena em seu lar. Além do roteiro bem construído, destaca-se em 'Desobediência' o entrosamento do elenco central, com ótimas e nuançadas atuações de Alessandro Nivola e das duas Rachel, a Weisz e a McAdams. O mais bonito em 'Desobediência', porém, é mostrar como a transgressão do amor homossexual estigmatizado confronta não apenas as ideias preconceituosas e retrógradas: ele também é capaz de (re)colocar o olhar compreensivo para com o diferente e o altruísmo humanista em primeiro plano no cotidiano de cada um.

Autor
Jornalista e crítico de cinema, integrante da Associação Brasileira de Críticos de Cinema (Abraccine). Editou de 1999 a 2017 a coluna Contracapa (artes, cultura e entretenimento), publicada no Segundo Caderno do jornal Zero Hora. Neste período, também atuou como repórter cultural do caderno de variedades de ZH. Apresentou o Programa do Roger na TVCOM entre 2011 e 2015 e é é autor do livro "Mauro Soares - A Luz no Protagonista" (2015), volume da coleção Gaúchos em Cena, publicada pelo festival Porto Alegre Em Cena. Foi corroteirista da minissérie "Tá no Sangue - Os Fagundes", veiculada pela RBS TV em 2016. Atua como repórter e crítico de cinema no Canal Brasil.

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