O dia D e a hora H

Por Marino Boeira

O despertador toca com estridência avisando que a hora estava chegando.

São exatamente 7 horas.

Eu tinha me preparado há muito para ela.

Dentro de exatamente duas horas eu iria viver aquilo que nos filmes americanos de aventura é apresentado como "the point of no return"  

Quando o relógio marcar 9 horas em ponto, minha vida mudará totalmente.

Haverá um Marino antes das 9 horas e outro Marino, totalmente diferente, depois das 9 horas.

Volto a olhar para o relógio: são agora 7h20.

Os segundos que gastara pensando no que me aguardava às 9 horas, tinham sido mais do que isso.

Foram 20 minutos. Imaginando que pensava lucidamente sobre o futuro, tinha dormido novamente.

Nada grave.

Preciso apenas levantar da cama e cumprir o programado.

Um banho rápido.

Engolir o café com leite e comer uma fatia de pão com manteiga, deixados de véspera sobre a mesa.

Basta esquentar o café no micro, o pão já tinha sido cortado e a manteiga estava na primeira prateleira da geladeira.

Depois, vestir a roupa que está sobre a cadeira, descer pela escada os quatro andares para evitar o velho elevador não muito confiável e apanhar o táxi no ponto da esquina.

 A cama, vai ficar por arrumar e a louça, suja na pia sem qualquer sentimento de culpa porque depois das 9 horas, isso fará parte apenas da minha vida passada.

Com tudo cronometrado chegarei no local onde a minha vida sofrerá uma mudança total, com mais de meia-hora de antecedência.  

Tinha previsto levar um livro do Slvoj Zizek para combater a ansiedade da última espera.

Na véspera, pensara em dormir cedo para acordar bem disposto, mas o efeito tinha sido o oposto. Rolara na cama e foi só depois das duas que conseguira dormir, sempre pensando naquela hora fatal que tinha pela frente.

A hora H, o momento da grande decisão, o tudo ou nada, uma vida inteira prestes a ser radicalmente dividida.

Olho novamente o relógio.

São quase 8 horas.

Preciso mudar radicalmente meus planos.

Nada de banho ou café com leite, pão e manteiga.  Apenas levantar, vestir a roupa e sair.

Tudo sobre controle.

De repente, voltam aqueles pensamentos covardes.

Vale a pena mudar tudo?

A vida está mesmo muito ruim?

É o quero mesmo, trocar o que agora é só contemplação para horas de ação? 

Viro filósofo, me perguntando se não é um absurdo impor compromissos na vida. 

Será que os budistas não estão certos? 

Deixar a vida passar do jeito que ela quiser, sem rupturas traumáticas?

A preguiça não seria uma virtude a ser cultivada?

Olho pela última vez o relógio.

Nove horas.

Ainda bem que já passou a hora H do dia D.

Viro para o lado para dormir e começo a sonhar novamente que sou um homem de ação, fazendo coisas que vão mudar o mundo.

Felizmente, é apenas mais um sonho.

Autor
Formado em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs), foi jornalista nos veículos Última Hora, Revista Manchete, Jornal do Comércio e TV Piratini. Como publicitário, atuou nas agências Standard, Marca, Módulo, MPM e Símbolo. Acumula ainda experiência como professor universitário na área de Comunicação na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS) e na Universidade do Vale do Rio do Sinos (Unisinos). É autor dos livros 'Raul', 'Crime na Madrugada', 'De Quatro', 'Tudo que Você NÃO Deve Fazer para Ganhar Dinheiro na Propaganda', 'Tudo Começou em 1964', 'Brizola e Eu' e 'Aconteceu em...', que traz crônicas de viagens, publicadas originalmente em Coletiva.net. E-mail para contato: [email protected]

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