O exemplo do pix no país da burocracia

Por Flávio Dutra

O vendedor de algodão doce passa e anuncia:

"Cinco real. Aceito pix."

Na sinaleira, o pedinte mostra o número do pix para receber a generosidade dos motoristas. Na banca que vende água mineral, refrigerantes e água de coco a plaquinha informa o número do pix em destaque.

Independentemente do valor e da serventia da transferência, o pix veio facilitar a vida de quem faz transações financeiras diariamente. Os cartões de débito devem estar enciumados com o crescente protagonismo "pixiano". O pagamento instantâneo funciona de maneira tão simples que atraiu criminosos em busca de dinheiro fácil, obrigando as autoridades monetárias a colocarem algumas travas de segurança no processo. Vale destacar que o pix é uma ferramenta brasileiríssima, gestada no Banco Central desde 2016 e lançada em  novembro de 2020. Como está funcionando bem, não falta gente para reivindicar a paternidade da invenção, que foi assumida como realização do governo Bolsonaro, pelo próprio, na recente campanha eleitoral. Paternidade à parte, o pix mostra em cada transação que está na contramão de outros processos burocratizantes que infernizam nosso no dia a dia.

Entretanto, é importante que se diga que a burocracia não é privilégio dos entes públicos no Brasil. Não me faltam exemplos de serviços privados que se esmeram em atazanar a vida de quem necessita deles. Já  precisaram providenciar documentação para o aluguel de um imóvel? É irritante para o interessado pelo volume de documentos e constrangedor para o potencial fiador, que precisa expor toda a sua situação econômico-financeira, muitas vezes junto com os dados da esposa, dependendo do regime de casamento. Enfrentei uma estressante situação dessas tempos atrás.

Igualmente fui massacrado por mil exigências para receber parte do pagamento pela venda de um imóvel no litoral, valores que seriam repassados por um consórcio com sede em Caxias do Sul. Era o credor, mas fui tratado como se fosse um devedor inadimplente. Por um erro do Financeiro do tal consórcio, o pagamento acabou antecipado, o que motivou um telefonema da responsável pelo setor, explicando, vê se pode, que, na real, só deveria receber 30 dias depois, mas que agora seriam gentis e não estornariam os valores. Ou seja, burocráticos e atrapalhados.

Agora estou envolvido em outra transação imobiliária, novamente com participação de um "conceituado" consórcio, com sede em Dois Irmão, e estou pagando os pecados - que nem são muitos - com a papelada exigida e a morosidade para avaliar e decidir sobre cada documento. A burocracia virou aliada da incompetência, pelos pedidos de reenvio de documentos já protocolados, sem contar o atendimento precário no SAC. E mais: nada escapa à exigência da autenticação em cartórios, essas caixas registradoras da burocracia, com mais e mais taxas ou emolumentos - o nome pomposo para o achaque. Cada carimbada não sai por menos de R$ 20,00 e as taxas, bem mais. Daqui a pouco me irrito mais ainda, conto tudo e revelo nomes. Está tudo documentado.

O setor financeiro do país, aliás, é rico em exemplos da máxima "pra quê facilitar, se podemos complicar (?)" para o cliente, embora opere e lucre - muito! -  justamente com a grana dos clientes. Novamente relato um caso pessoal de tratativas com o gerente de um banco que tem sede no exterior que, depois de longa peregrinação para abrir uma conta empresarial, demorou mais seis meses para conseguir o segundo cartão para o outro sócio do empreendimento. Aí lembro que em 1994 abri uma conta no Bank of Texas, em Dallas, em 20 minutos, mediante apenas a apresentação do passaporte. Na mesma cidade, por conta das operações da Rádio Gaúcha na Copa do Mundo dos EUA, contratei junto a uma operadora local oito linhas telefônicas, precisando somente de uma ligação e o envio de um fax, com o endereço para a cobrança dos serviços. Na época, pré-privatizações, só com pistolão para se conseguir uma linha de telefone automático no Brasil.

Volto aos cartórios porque são um capítulo à parte. Sem alongar muito o papo, conto apenas que ao precisar de uma procuração (exigência do banco já referido) o cartório demorou 30 dias para elaborar o documento, uma folha frente e verso, adornada com uma capa de papel, ao custo de R$ 120,00, incluindo uma infinidade de taxas.  

Ainda sobre a burocracia privada já nem falo da proposital enrolação das centrais de atendimento ao cliente quando acionadas para resolver algum problema ou cancelar serviços. O objetivo não declarado, mas evidente, é vencer o cliente no cansaço e nisso, reconheço, são competentes.

Desculpem o textão e o desabafo, mas a burocracia me dá urticária.

Autor
Flávio Dutra, porto-alegrense desde 1950, é formado em Comunicação Social pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs), com especialização em Jornalismo Empresarial e Comunicação Digital. Em mais de 40 anos de carreira, atuou nos principais jornais e veículos eletrônicos do Rio Grande do Sul e em campanhas políticas. Coordenou coberturas jornalísticas nacionais e internacionais, especialmente na área esportiva, da qual participou por mais de 25 anos. Presidiu a Fundação Cultural Piratini (TVE e FM Cultura), foi secretário de Comunicação do Governo do Estado e da Prefeitura de Porto Alegre, superintendente de Comunicação e Cultura da Assembleia Legislativa do RS e assessor no Senado. Autor dos livros 'Crônicas da Mesa ao Lado', 'A Maldição de Eros e outras histórias', 'Quando eu Fiz 69' e 'Agora Já Posso Revelar', integrou a coletânea 'DezMiolados' e 'Todos Por Um' e foi coautor com Indaiá Dillenburg de 'Dueto - a dois é sempre melhor', de 'Confraria 1523 - uma história de parceria e bom humor' e de 'G.E.Tupi - sonhos de guri e outras histórias de Petrópolis'. E-mail para contato: [email protected]

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