O Homem do Bacalhau

Por José Antônio Moraes de Oliveira

Algumas das lembranças afetivas mais recorrentes misturam alegrias e dissabores. E as constantes preocupacões de nossos pais com pestes e doenças. Nos invernos gelados de Porto Alegre, bastavam uns espirros ou uma tosse noturna para acionar os alarmes. Hora dos remédios caseiros, chás amargos e compressas quentes que faziam suar às bicas. E acompanhados por xaropes, tisanas e biotônicos.

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Um dos mais detestados e que nunca faltava era um líquido leitoso e com gosto de peixe, a Emulsão de Scott. A cada inverno de nossa infância, a irmã e eu éramos presenteados com fartas colheradas de óleo de figado de bacalhau, que a mãe acreditava ser um remédio milagroso que nos protegia contra as doenças que rondavam crianças e adolescentes.

Nossa farmácia caseira estava sempre abastecida com vidrinhos de homeopatia, além dos habituais Phimatosan, Conhaque de Alcatrão de São João da Barra e do enjoativo Xarope São João. E nunca faltava o Saphrol um "verdadeiro tônico" pulmonar anunciado nos cartazes nos bondes Prado e Independência. Prometia pulmões de aço, resistentes a gripes, tosses, resfriados e bronquites.

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Bem mais tarde, o professor na faculdade pergunta quem lembrava da Emulsão de Scott. E antes que eu abrisse a boca, conta que um ícone da nossa cultura popular quase desapareceu - o Homem com o Bacalhau às Costas. Que foi alvo do branding, a técnica que propõe recriar velhas marcas e adaptá-las ao gosto dos novos consumidores. Tudo começou com o boato que um grande laboratório estava modernizando o nome e embalagem da Emulsão de Scott. A notícia vazou, provocou a corrida às farmácias e drogarias, sem falar nos apelos e insultos nas redes sociais.

Tempos depois, um especialista em marcas escreveu que os funcionários veteranos do laboratório se recusaram a mexer no homem do bacalhau. E quando um "especialista" na TV anuncia um crime de lesa-marca sem consulta ao público, a empresa publica um "A Pedido", negando qualquer mudança em seu mais valioso produto.

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O Homem com o Bacalhau às Costas ganhou a briga e continua nas prateleiras da farmácia da esquina. Mas como os marqueteiros não descansam, surge uma nova versão do óleo de fígado de bacalhau - na côr-de-rosa e com sabor  de morango!

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Autor
José Antônio Moraes de Oliveira é formado em Jornalismo e Filosofia e tem passagens pelo Jornal A Hora, Jornal do Comércio e Correio do Povo. Trocou o Jornalismo pela Publicidade para produzir anúncios na MPM Propaganda para Ipiranga de Petróleo, Lojas Renner, Embratur e American Airlines. Foi também diretor de Comunicação do Grupo Iochpe e cofundador do CENP, que estabeleceu normas-padrão para as agências de Publicidade. Escreveu o livro 'Entre Dois Verões', com crônicas sobre sua infância e adolescência na fazenda dos avós e na Porto Alegre dos velhos tempos. E-mail para contato: [email protected]

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