Quando eu era milionário

Por Flávio Dutra

13/02/2023 16:15
Quando eu era milionário

Participei na semana passada da gravação do mais novo produto de Coletiva.net, o '(Re)contar', quando se é confrontado com o nosso perfil publicado no portal anos atrás, no meu caso há 18 anos. No vídeo, conduzido com competência pela querida Gabriele Lorscheiter, fiz uma viagem no tempo até os dias atuais. É uma experiência pra lá de interessante e, às vezes, constrangedora, este cotejo entre duas realidades em que você é o personagem. Ao final, questionado pela Gabriele, admiti que não tive uma trajetória de vida que se possa considerar épica ou acidentada, mas, sim, pontuada por muitas reviravoltas e inquietações profissionais de um eterno aprendiz. 

Aproveitei para mostrar as anotações que havia pesquisado nas carteiras de trabalho (incrivelmente foram apenas duas) dos 15 registros de empregos, sem contar as passagens pelo serviço público e as campanhas políticas, o que eleva para mais de 20 as atividades profissionais.

A pesquisa revelou também que, nos mais de 40 anos de atuação profissional, passei por todos os planos econômicos que marcaram a economia brasileira nos tempos de inflação alta. De 1967 a 94 foram sete planos, ou quase uma mudança a cada quatro anos. A moeda passou do Cruzeiro, instituído em 1942, para  o Cruzeiro Novo (1967), Cruzeiro, de novo (1970), Cruzado (1986), Cruzado Novo (1989), Cruzeiro, mais uma vez (1990), Cruzeiro Real (1993) até o Real em 1994. Só quem viveu naquela época para avaliar o que era a barafunda da economia e seu impacto no nosso dia a dia, com a  remarcação quase diária dos produtos no comércio.

Lembro que até produzi um texto dando conta que descobri que já fui um milionário, justamente naquela época. A descoberta se deu quando encontrei a Declaração do I.R. de 1985, atestando que eu recebi naquele ano a fortuna de 60 milhões, 286 mil cruzeiros, o que representava, em média, um salário de mais de 4 milhões e 600 mil por mês. Uma Mega Sena acumulada! Só o Imposto de Renda me mordeu em mais de 6 milhões e 700 mil retidos na fonte e ajudei a diminuir o déficit da Previdência contribuindo com 5 milhões e 400 mil. 

E, claro, havia a confusão com a troca do padrão monetário. Em 1988, por exemplo, pagava 15 mil cruzados de mensalidade na creche de um dos filhos e, no ano seguinte, 29 mil cruzados novos para outro, numa escola particular. Uma verdadeira fortuna. Devo ter empobrecido com o passar dos anos, pois em 1991 recebi míseros 5 milhões, 279 mil cruzeiros. No ano seguinte fui obrigado, inclusive, a vender um Passat, ano 78, por 2 milhões e 700 mil cruzeiros. Era dura a vida de milionário naqueles tempos de inflação galopante. Pura fantasia! O poder aquisitivo ficava corroído da noite para o dia. Até tentei fazer a conversão daqueles valores em cruzeiros e cruzados para o Real, mas a operação é muito complicada para o meu entendimento e acabei desistindo.

Havia, porém, artifícios para sobreviver diante da erosão diária das finanças. O Overnight, uma aplicação bancária corrente na época, dava alguma proteção aos nossos ganhos e fez a fortuna de muitos espertalhões. Para se ter uma ideia de como funcionavam as contas públicas, o governo Collares (1990-94) se financiou graças à inflação alta: era só atrasar, sem correção monetária, o pagamento aos fornecedores por um mês ou pedalar o aumento do funcionalismo e o caixa estava garantido. A empresa onde trabalhava na época decidiu, para preservar minimamente o poder aquisitivo dos funcionários, pagar os salários a cada 15 dias e depois semanalmente. Um expediente comum era o cheque pré-datado que permitia algum fôlego às finanças pessoais. Era comum também o pedido de antecipação de parte do 13º salário porque o montante no final do ano, com a correção monetária, ficava recomposto e ainda garantia-se um plus nos ganhos. E assim sobrevivíamos quase numa boa, acostumados à espiral inflacionária, consumindo um pouco aqui, um pouco ali, administrando as contas, fazendo ginástica com os salários e até planos para o futuro, na certeza de que mais dia menos dia nossa moeda deixaria de nos envergonhar. 

Então, em 1994 veio o Plano Real e eu, que estava cobrindo a Copa do Mundo nos Estados Unidos, acabei não sofrendo o primeiro impacto do novo plano. As informações vindas do Brasil davam conta que, depois de sucessivos planos econômicos mal sucedidos, havia uma justificada desconfiança da população. De volta à terrinha, a primeira coisa que fiz ao chegar no Galeão foi trocar dólares por reais e aí tomei contato com aquelas notas feias, diferentes uma das outras, eu que estava quase americanizado depois de 55 dias nos EUA, pagando e recebendo em verdinhas. Economizei uma boa grana em dólares naquela viagem, mas mesmo assim não levei vantagem porque no início do Plano Real o dólar valia tanto quanto a nova moeda brasileira. Era 1 por 1. E lá se foi mais uma chance de reiniciar a vida de milionário. Mesmo assim, não sinto saudades daquele tempo. Prefiro a estabilidade de agora que me assegura um amanhã sem surpresas, torcendo para que a política econômica do novo governo não derrube essa estabilidade tão duramente conquistada.