RETROCEDER

Por Fernando Puhlmann

"As três fases da vida: o nascer, o viver e o morrer...

Das quais nenhum ser pode escapar..."

Elizaete Ribeiro

Fazia muito tempo que ele havia saído de casa. Os planos sempre foram partir e não voltar, mas o destino não estava nem aí para os seus planos. E lá estava ele, na mesma porta, o mesmo menino, pedindo para entrar.

Sair do interior do Rio Grande do Sul para morar na Capital sempre esteve na meta, era um desejo que ele tinha desde a juventude: conhecer pessoas, lugares, outras vidas e vivê-las. Depois países, continentes e tudo mais que isso representasse.

Conseguiu. Com a morte da mãe e o endurecimento do pai, achou que era hora de abrir as asas e voar. Aconteceu. No início foi difícil, pouco dinheiro, pouca experiência, mas muita vontade. Começou em uma empresa de representação comercial, atendendo de porta em porta, de balcão em balcão. Cresceu rápido, era inteligente, comunicativo e trabalhador.

Nunca quis construir muitos laços afetivos, achava que laços prendiam, ancoravam. Sua vida era para ser leve, ágil, dinâmica. Hoje aqui, amanhã lá e depois de amanhã em qualquer lugar que tenha dinheiro, prazeres e oportunidades.

Até que o telefone tocou: Toninho, é a Marta. Tu precisas voltar, o teu pai está internado na Santa Casa, e é grave.

Noites insones, revolta, negação e, por fim, aceitar que o destino, às vezes, te prega peças. Pediu licença na empresa, fechou a casa, pegou o táxi e depois o ônibus. Não conseguiu dormir a noite toda - o barulho do motor, o vento gelado que entrava pela fresta da janela, e o ronco do passageiro ao lado não permitiam, isso era o que ele achou de desculpa, mas a verdade é que voltar era retroceder ao inferno. E que inferno.

Nunca tivera uma relação afetuosa com o pai, sempre fora o mimoso da mãe, que o protegia dos ataques de fúria do marido. Quando ela morreu, os ataques cessaram, mas a frieza do pai passou a doer mais que os tapas. Porquê voltar? O pai nunca respondeu a uma carta que fosse, ele enviou duas, não obteve respostas e não mandou mais. Fazia 10 anos que não se falavam, agora isso.

Conforme a noite passava e os olhos iam se acostumando com a escuridão, ele conseguia avistar as tramas de cercas à beira da estrada, passavam rápido como o seu pensamento. Lembrou da noite derradeira.

-Antônio, te quero amanhã às oito horas na loja.

- Para quê?

- Tu vais assumir de balconista. O João precisa de férias e vai tocar para ti esse mês, tá na hora de tu entenderes como funciona a vida.

Aquilo calou fundo, depois de meses sem uma palavra dirigida a ele e o pai o chamava para dar uma ordem como se ele fosse um vagabundo. A relação nunca fora boa, mas ele sempre fora respeitoso.

- Eu já sei como funciona a vida. Levantar, trabalhar, voltar para casa, dormir e levantar novamente. Uma vida sem graça, medíocre e triste.

As palavras brotaram da sua boca, como se fosse outra pessoa falando através dele. Não tivera nem tempo de pensar, elas só saíram.

O pai voou nele, mas ele já não era mais uma criança.

 Marta entrou na sala e os encontrou engalfinhados por cima da mesa da sala de jantar.

- Seu Plínio, largue o Toninho, vocês vão se matar.

Ele conseguiu escapar dos braços do seu agressor, empurrou-o ao chão e ficou olhando com desprezo. Subiu a escada, entrou no quarto e começou a arrumar a mala. Partiu naquela noite mesmo, no Húngaro que saía às 23h, rumo à Capital. Tinha um pouco de dinheiro guardado que recebera da madrinha de aniversário, não sabia se iria bastar, mas era o que havia.

Fechando os olhos no ônibus, repassando aquele episódio de uma década atrás, ele lembrou também de todas as vezes que fora agredido de forma gratuita pelo pai. A mãe dizia que ele era um bom homem, que fazia isso porque se preocupava com o filho. Ele pensava que o pai era simplesmente um covarde, que nunca tivera forças para abandonar a vida que levava: um emprego medíocre, um casamento sem afeto, uma rotina chata e um filho que ele desprezava.

Chegou pela manhã à cidade, desceu do ônibus e resolveu ir a pé até sua casa - ou a casa de seu pai, melhor dizendo. Eram poucas quadras, foi caminhado, as ruas ainda semidesertas, recordando histórias de um passado que parecia ter acontecido em outra vida. As emoções afloraram várias vezes nesse pequeno trajeto, pensou que talvez fosse realmente o momento de retornar a visitar o pai com mais frequência, de repente sentiu falta de Marta, a empregada da casa que praticamente o criou - como pudera ficar 10 anos sem vir vê-la? -, se deu conta que também sentia saudades dos amigos que ficaram ali. Precisava voltar mais e faria isso.

Dobrou a última esquina, avistou o sobrado no meio da quadra, já com a pintura desgastada pelos anos, sem as flores na sacada, com grama alta no jardim. Atravessou a rua, passou o portão, subiu a pequena escada de três degraus e bateu na porta.

Nada. Bateu mais uma vez. Silêncio. Fez a volta na casa, mas tinham construído um muro alto no corredor da garagem que havia ao lado do sobrado, não conseguiu enxergar o pátio.

Resolveu esperar. Marta deveria ter saído para buscar pão e leite. Sentou na escadinha em frente à porta. Viu uma janela em frente à casa abrir, um rosto conhecido surgiu através dela. Com o mesmo sorriso que sempre o cumprimentou, dona Chinoca o chamou de lá: Toninho, que alegria, quanto tempo!

Ele acenou, levantou e atravessou a rua.

- Bom dia. Quanto tempo? Como a Senhora está?

- Estou bem. E tu? Sumistes, guri. Nunca mais soubemos notícias tuas.

- Pois é, ganhei a estrada e fui fazer a minha vida.

- O que fazes sentado na porta de casa a essa hora?

- Cheguei agora pelo ônibus, mas não tem ninguém em casa e eu não trouxe a chave. Aliás, acho que nem tenho mais. - Disse, sorrindo, meio encabulado

- Entra, a Marta deve estar no hospital com o teu Pai. Vieste ver ele?

- Sim, a Marta me ligou e eu vim. A senhora sabe como ele está?

-Faz a volta, entra aí que eu te conto enquanto preparo um café, deves estar com fome.

Ele entrou, a casa parecia ter parado no tempo, os mesmos móveis, as mesmas fotos na parede, a mesma cortina azul desbotada, o mesmo cheiro de comida boa e flores mortas.

- Vem aqui na cozinha que eu vou te contando enquanto passo o café.

Ele sentou e teve um dejavu: a mãe na beira do fogão e ele, aguardando. Lembrou da luz solar da cozinha do sobrado, o cheiro de pão e as risadas da mãe.

Conversaram sobre amenidades, até que a vizinha do nada, falou:

- Teu pai começou a morrer na noite que fostes embora.

Silêncio.

- Ele nunca se recuperou - ela voltou à carga

- Como ele está?

- Dizem que é pneumonia, eu acredito que seja tristeza encubada. Ele nunca esqueceu tua mãe e, depois que tu fostes embora, eu nunca mais vi ele falar com ninguém.

- Meu pai fez as escolhas dele, escolheu ser amargo, rude e triste

- Escolheu ser um marido fiel para tua mãe e um pai para ti.

- Porquê a senhora está me dizendo isso, tia Chinoca? - A tia saiu sem pensar, como se ele ainda fosse o menino que ia lá roubar laranja no pátio da casa dela.

- Porquê é a verdade. Agora vai vê-lo, as visitas no hospital começam as 9h. Deixa tua mala aqui, na volta tu pegas.

- Certo - disse ele, levantando.

O ar da rua continuava gelado, um vento próprio da fronteira com o Uruguai que o fez recordar das manhãs de juventude indo para o colégio. Desceu a rua a pé em direção ao hospital. Resolvera fazer uma trégua com o pai, conversar civilizadamente, contar que dera certo na vida até ali, tinha um bom emprego, era organizado, guardara dinheiro, conhecera Montevidéu e Buenos Aires, montara uma pequena biblioteca e fazia planos de comprar um apartamento. Viria mais vezes visitá-lo, não o abandonaria na velhice e também ampararia Marta, que já tinha uma certa idade. As quadras iam passando e logo ele avistou a Santa Casa, atravessou o pátio, chegou na portaria.

Mas não chegou a entrar, Marta estava parada na porta, chorando.

Autor
Sócio-cofundador da Cuentos y Circo, Puhlmann é um dos principais especialistas em YouTube do país, com um olhar focado em possibilidades de faturamento na plataforma e uma larga experiência em relacionamento com grandes marcas do mercado de entretenimento. Além de diretor de Novos Negócios da CyC, tem também no seu currículo vários canais no país, entre eles o do escritor Augusto Cury, do Gov Eduardo Leite, Natália Beauty e do Grêmio FBPA, sempre atuando como responsável pela estratégia de crescimento orgânico dos canais. Já realizou palestras sobre a nova Comunicação juntamente com diretores do YouTube Brasil como a abertura do 28º SET Universitário da Famecos-PUCRS, o YouPIX/SP e o Workshop YouTube Gaming Porto Alegre. Desde 2013, Puhlmann ministra cursos, seminários e oficinas sobre YouTube, tendo mentorado mais de 30 canais nos últimos anos.

Comments