Saudações de Nelson Rodrigues

Por Carlos Guimarães

A literatura moderna sobre futebol tem como base os processos científicos como modelos funcionais de como o esporte opera em alto rendimento. O que determina o sucesso é a ciência, o método, a multidisciplinaridade e as integrações de quatro valências que compõem os treinamentos desportivos: a técnica, a tática, o físico e o mental. O best seller "Moneyball", que depois virou filme com o Brad Pitt, se tornou uma espécie de livro de cabeceira de uma nova ordem do esporte onde o que conta é a interpretação de números para determinar quem deve ser contratado, por exemplo. Trata-se de uma história real, mas aplicada ao beisebol. Adaptações são feitas ao futebol e o rigor científico de áreas como a matemática chega às comissões técnicas dos clubes de ponta. Os analistas de desempenho são responsáveis por trabalhar com a interpretação destes números, avaliar condições dos atletas, coletivas e dos adversários e apresentar ao treinador seus pareceres.

A final da Libertadores de 2019 entra para a história por ser a primeira na modalidade de jogo único. Mas também revelou um dos maiores jogos do século, talvez o maior jogo da década no continente sul-americano. Em campo, Flamengo e River Plate protagonizaram um duelo de altíssima intensidade, resolvido apenas nos últimos minutos com a vitória do Flamengo por 2 a 1 e o segundo título do clube carioca na competição. Para um combate desta dimensão, a preparação para o jogo determina um nível mental altíssimo, onde a concentração precisa ser total durante os 100 minutos de partida. Mesmo em final de temporada, o nível físico precisa atingir um ápice, ainda que em forma de superação dos jogadores. A engenhosa parte tática, as estratégias que visam a eliminar virtudes do adversário e potencializar as qualidades da própria equipe, desenha as variáveis, as possibilidades, as iniciativas e os posicionamentos a serem cumpridos. Já a técnica se mostra como o diferencial, tratando-se da resolução individual dos jogadores dentro de uma engrenagem coletiva.

Os quatro pontos foram demonstrados em campo. Claramente, a estratégia do River Plate em eliminar os espaços e os raciocínios dos jogadores do Flamengo funcionou. Uma marcação sufocante, pressão incessante no homem da bola e objetividade na retomada da mesma neutralizaram o jogo do melhor time brasileiro da temporada. O Flamengo parecia não saber o que estava acontecendo. No segundo tempo, o treinador do River Plate, Marcelo Gallardo, promoveu alterações que impactaram na maneira da equipe atuar. Jorge Jesus, treinador do Flamengo, também promoveu modificações que ajudaram no desempenho da equipe. Mesmo assim, não havia muitas chances de criação, uma vez que o empenho argentino suplantava qualquer iniciativa flamenguista. Quase até o final.

Em dois lances, Gabriel Barbosa, o Gabigol, definiu o jogo, virou a partida e deu o título ao Flamengo. Pratto, atacante do River, falhou, foi desarmado e na única vez em que houve espaço, o Flamengo criou seu primeiro gol. Pinola, zagueiro de exuberante atuação, falhou uma vez apenas. No gol do título, no momento em que não podia, o único lapso de desatenção num universo de 100 minutos de jogo.

O futebol transcende as quatro valências. Há um fator imprevisível, inimaginável, imponderável, que se manifesta volta e meia em grandes partidas. O que dá emoção ao jogo não é o rigor científico. Ele promove estratégias, mapeia condições, reúne dados e ajusta intenções. Ele até pode definir o jogo. Mas nem sempre. No jogo de sábado, por mais que algumas explicações complexas (como, por exemplo, a entrada de Diego ter desarticulado o sistema de meio de campo do River Plate) e singelas (as falhas individuais definiram o confronto) tenham aparecido como forma de dar luz ao ocorrido, existe algo muito maior que liga o esporte à paixão existente por ele: a emoção.

A preparação científica não entra para a história. Ela jamais explicará, nem hoje, nem daqui a 50 anos, o que foi o jogo de sábado. Ela esbarra no impossível. Ela não chega ao impossível. Não existe ciência plena quando algo não é explicado. Não existe ciência plena onde há algo altamente imprevisível que tem uma relevância maior que aquilo que foi planejado. O jogo de ontem foi isso. O que entrará para a história é a realização de uma partida em que se via, nitidamente, que tudo estava perdido e que, nos minutos finais, sem previsões, sem análise, sem interferências racionais, tudo estava ganho. Porque ele é isto, é a magia da realização de algo que parecia impossível, mas que aconteceu. Sem saber que era impossível, foi lá e fez.

Em termos simbólicos, o futebol se aproxima muito mais das narrativas de heróis e vilões do que do engessamento das luzes científicas e dos saberes de laboratório. O futebol é um evento caótico, produtor de diversos movimentos caóticos, momentos caóticos e narrativa caótica. A ciência, que é importante, mas não é tudo, torna-se instrumental, operacional. Ela funciona como um método, que une quatro aspectos razoavelmente explicáveis - razoavelmente porque a prática é humana e, portanto, submetida a inúmeras variáveis e imprecisões - que servem como uma mediação entre o que se pretende e o que se atinge. 

O River não perdeu porque teve uma estratégia pior - pelo contrário, foi superior. Não perdeu porque a parte tática foi superada pelo adversário - pelo contrário, foi superior. Não perdeu porque não tem técnica. Não perdeu porque a parte mental foi pior - em boa parte do jogo, o Flamengo parecia bem mais perdido que o River. Perdeu porque houve falhas, porque a intensidade não foi mantida, porque houve melhora do Flamengo, tudo isso. Mas teve algo mais, que é aquilo que entra para história. Era impossível. Mas no futebol, o impossível é só uma formalidade que esse apaixonante esporte lindamente descarta, num tributo eterno àqueles que sempre insistiam em perceber que sempre há algo maior que um campo, vinte e dois jogadores e uma bola. Ao lado do Seu Sobrenatural de Almeida, onde quer que esteja, Nelson Rodrigues sorri. Só as entidades realmente entendem de futebol. Os mortais não precisam. Deixa a gente amar o esporte. A gente nunca vai conseguir explicá-lo do jeito que ele merece.

Autor
Comentarista esportivo da Rádio Guaíba, com passagens pelas rádios Gaúcha e Bandeirantes, atua há 20 anos no radiojornalismo esportivo de Porto Alegre. É doutorando em Comunicação pela PUCRS, mestre em Comunicação e Informação pela UFRGS, tem especialização em Jornalismo Esportivo pela UFRGS e graduação em Jornalismo pela PUCRS. Autor do livro "O comentarista esportivo contemporâneo: novas práticas no rádio de Porto Alegre", lançado em 2018. Nem sempre escreve sobre futebol.

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