Tempo de livros na praça

Por Flávio Dutra

Livraria Lello. Da esquerda para direita: fachada, térreo, escadaria e Sala José Saramago

Vem aí mais uma Feira do Livro de Porto Alegre. Por isso, ao invés de escrever sobre o agitado momento político, o que deixo  para a vizinha de página e especialista, Elis Radmann, vou falar sobre livros e uma inesquecível experiência que vivi na cidade do Porto, em Portugal, visitada recentemente num périplo ibérico com a Santa. Conhecidos que sabiam que iríamos passar pela cidade portuguesa recomendaram, entusiasmados: não deixe de visitar  a Livraria Lello.

Foi o que fizemos no dia seguinte à chegada na cidade. Confesso que a fila de uma centena de pessoas para comprar ingressos me desestimulou. E ainda por cima caia uma chuvinha fina. Tenho ojeriza a filas e já havia enfrentado muitas  em outros roteiros turísticos pela viagem. Mas a Santa agiu com presteza, comprou os ingressos pela Internet (5 euros cada, que depois podem ser abatidos na compra de livros) e conseguimos adentrar à livraria até antes do horário marcado (14h) para a nossa incursão. 

A Lello é um prédio em estilo neogótico construído em 1906 na Rua das Carmelitas, 144, para abrigar o que seria a livraria, fundada como uma sociedade em 1881 para o comércio e a edição de livros. São apenas dois pisos, nada muito grande: o térreo e mais um mezanino estendido, abarrotados de livros, visitantes e selfies para todos os lados. O segundo piso é acessado pela icônica escadaria vermelha em espiral, que teria inspirado a similar que aparece na livraria onde Harry Potter conheceu Gilderoy Lockhart, na saga do menino bruxo. A autora J.K. Rowling chegou a morar na cidade do Porto, entre 1991 e 92, mas negou a alegada inspiração, garantindo que nunca entrou na livraria. A bem sucedida escritora não sabe o que perdeu.

Considerada uma das mais belas livrarias do mundo e desde 2013 classificada como Monumento de Interesse Público pelo governo português, a Lello, (www.livrarialello@pt), recebe em média três mil visitantes por dia, ou mais de um milhão de turistas por ano, entre eles a predominância de espanhóis, franceses, brasileiros, alemães e norte-americanos, além dos portugueses, é claro.

Pelo menos três recantos internos merecem especial atenção: a Gemma, dedicada aos livros raros, manuscritos, primeiras edições, livros de luxo e livros objeto; ao mesmo tempo, a livraria apresentava uma exposição temporária com seis obras raras: as primeiras edições de 'Just So Stories', de Rudyard Kipling;  de 'East of Eden' (A Leste do Eden), de John Steinbeck ; o primeiro livro de José Saramago, 'Terra do Pecado', de 1947; a folha de rosto do romance de Jane Austen, publicado em 1813, 'Pride and Prejudice' (Orgulho e Preconceito); de Fernando Pessoa, '35 Sonnets', um dos poucos livros publicados em vida, produzido em língua inglesa;  e, ainda, um exemplar com sobrecapa verde de 'Nineteen Eighty -Four'(1984) de George Orwell, detalhe que ganhou relevância porque a tinta vermelha utilizada nessa primeira edição acabou no meio da impressão.

Por fim, mas não menos importante, recomenda-se a passagem pela Sala José Saramago, uma parceria entre a Lello e a Fundação Saramago, espaço que reúne primeiras edições, obras traduzidas em diversos idiomas, objetos pessoais e de momentos importantes da vida dele, selecionados por Pilar del Rio, última companheira do único escritor em língua portuguesa distinguido com o Nobel de Literatura.

Outra atração da Lello é o grande vitral do teto, que ostenta a divisa da livraria: 'Decus in Labore', Dignidade no Trabalho. Um trabalho no qual o livro é o centro de tudo. O acervo da Lello é de mais de 100 mil livros em diversos idiomas. Só no ano de 2016 chegou a vender mais de 357 mil livros.

Durante a visita, confesso que cheguei a pensar que poderia ter levado um dos meus livros, para deixá-lo em meio a vasta oferta de títulos oferecidos pela Lello, de preferência perto das obras de Saramago, numa proximidade que talvez constrangesse o nobre Nobel português, mas que seria a forma de expressar meu orgulho de estar presente naquele templo da Cultura.

No mesmo dia da visita postei fotos e um texto curto no Facebook, destacando  como deve ser feliz a cidade que tem uma livraria como atração turística. Penso que devia ter usado outra expressão para o caso, algo como "bem aventurada". Assim como é bem aventurada nossa Porto Alegre por promover há 68 anos sua Feira do Livro, que começa nesta sexta-feira na Praça da Alfândega.

Pela primeira vez em muitos anos, eu que já estive ligado à Feira de muitas formas, vou ser apenas um consumidor, livre para perambular pelas alamedas, esgravatar nos balaios de ofertas, participar de uma ou outra sessão de autógrafos e, por que não, esticar para um chopinho no final de tarde. J.K. Rowling não sabe o que está perdendo por não visitar nossa Feira do Livro. Talvez a visita pudesse até servir de inspiração para um dos seus próximos livros. 

Autor
Flávio Dutra, porto-alegrense desde 1950, é formado em Comunicação Social pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs), com especialização em Jornalismo Empresarial e Comunicação Digital. Em mais de 40 anos de carreira, atuou nos principais jornais e veículos eletrônicos do Rio Grande do Sul e em campanhas políticas. Coordenou coberturas jornalísticas nacionais e internacionais, especialmente na área esportiva, da qual participou por mais de 25 anos. Presidiu a Fundação Cultural Piratini (TVE e FM Cultura), foi secretário de Comunicação do Governo do Estado e da Prefeitura de Porto Alegre, superintendente de Comunicação e Cultura da Assembleia Legislativa do RS e assessor no Senado. Autor dos livros 'Crônicas da Mesa ao Lado', 'A Maldição de Eros e outras histórias', 'Quando eu Fiz 69' e 'Agora Já Posso Revelar', integrou a coletânea 'DezMiolados' e 'Todos Por Um' e foi coautor com Indaiá Dillenburg de 'Dueto - a dois é sempre melhor', de 'Confraria 1523 - uma história de parceria e bom humor' e de 'G.E.Tupi - sonhos de guri e outras histórias de Petrópolis'. E-mail para contato: [email protected]

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