Um especialista

"Pour mentir, il faut être un vieux singe."

(Georges Simenon)

Monsieur Pierre Hebey faz uma pausa e sinaliza ao garçom, para renovar mais uma vez seu copo de Calvados. Olha ao redor - seus companheiros de mesa no "La Mère Catherine" parecem atentos e sequiosos por suas palavras. Ele toma um largo gole e retoma com gosto o fio da narrativa, como sempre, no tema na qual ele é um dedicado especialista: a vida, as manias e principalmente as preferências gastronômicas do mais importante personagem de George Simenon, Jules Amedée François Maigret, ou simplesmente, Comissário Maigret.

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Aquele cavalheiro de gravata borboleta e que sorve lentamente seu Pére Magloire já foi um aplaudido chef em um tradicional restaurantes de Lyon. No entanto, logo se decepcionou com a profissão, quando perdeu sua única estrela no Guide Michelin por abusar da truffe blanche em receita que tentava inovar. Pierre Hebey então resolveu pendurar as caçarolas e dedicar-se integralmente ao seu passatempo favorito - romances policiais. Em pouco tempo, leu toda Agatha Christie e depois, devorou as 75 novelas e os 28 contos de Georges Simenon sobre Jules Maigret.

Uma mania puxa outra e, a cada viagem a Paris, passou a seguir as pegadas de seu herói por bistrots, brasseries e restaurants da cidade. Com o tempo, inventou de provar os mesmos pratos e as mesmas bebidas que figuram nas andanças de Maigret por becos mal iluminados e boulevards elegantes.

Nem sempre aprovava as preferências do rabugento Comissário, mas aos poucos se transformou em um apreciador das especialidades culinárias que seu herói garimpava em endereços secretos nos velhos quartiers. Após degustar um peixe fresco preparados à moda da Normandia ou um pernil de porco selvagem ao sauce de vin rouge, Pierre Hebey abria um de seus livrinhos e seguia, página-a-página, o desenrolar de mais um caso misterioso do Comissário. Repetindo o comportamento de seu herói, ao entrar em um dos lugares metiulosamente descritos, conferia o décor do ambiente, observava os frequentadores e não raro, com os cotovelos no balcão consultava le Patron sobre o que estava sendo preparado na cozinha.

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O compenetrado Monsieur Hebey provoca os colegas de mesa, como ao confidenciar que muitas vezes, o Comissári Maigret bebia mais vinho do que cerveja, quando suas investigações não corriam bem. Como em Le Revolver de Maigret, quando está almoçando no Grill do Savoy Hotel, em Londres. Ele escolhe um prato recomendado no cardápio, Lobster à l'Americaine, dispensa a forte stout inglesa e pede uma garrafa de vinho do Reno. Ele tem um caso bem complicado nas mãos - à sua frente, o jovem Alain Lagrange, filho de um amigo e acusado de ter assassinado  André Delteil e ocultado seu corpo em um baú, na Gare du Nord. Para dificultar as coisas, Maigret suspeita que o jovem Lagrange teria furtado seu revólver, um estimado presente do FBI. Enquanto devora a lagosta e o arroz pilaf temperado com açafrão, Maigret observa que o jovem suspeito mal tocou na comida. Suspira e pede outra garrafa do vinho alemão.

Mas quando as coisas ficam na rotina, o Comissário apreciava beber sua cerveja alsaciana na Brasserie Dauphine, na Rue de Harlay, não longe do Quai des Orfévres. Mas, na novela La Folle de Maigret, ele se impacienta com a falta de solução para o caso de uma velha dama, Léontine Antoine. Na hora do almoço, com LaPointe nos calcanhares, vai até a brasserie e em lugar de cerveja, pede um Beaujolais para acompanhar o plat du jour - os apreciados Filets de Herring e as Andouillettes, recém chegadas de Auvergne e servidas com uma travessa de Pommes Frites.

Como lembra o narrador, o Comissário havia se esquecido que naquele dia, Madame Maigret contava com ele para o almoço, pois tinha na panela sua especialidade, o apreciado Blanquette de Veaux. Resignada, ela reserva a surpresa para o jantar de logo mais.

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O narrador na mesa do La Mère Catherine acrescenta que, em algumas ocasiões, Jules Maigret saía de seus hábitos e tentava um prato diferente, o que acontece em Maigret, Lognon et les gangsters. Ele está subindo a rue des Acacias e sente fome. Enxerga, do outro lado da rua, um típico restaurante italiano, o Chez Pozzo. Entra, se agrada do ambiente e pede os Escalopes à la Florentine e uma garrafa de Chianti. Mas, imerso em seus pensamentos, come mais do que devia e se sente pesado. Se enrola no cachecol, acende o cachimbo e volta, resmungando, para o Quai.  Sabe que o dia vai ser longo e entrar noite adentro.

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Autor
José Antônio Moraes de Oliveira é formado em Jornalismo e Filosofia e tem passagens pelo Jornal A Hora, Jornal do Comércio e Correio do Povo. Trocou o Jornalismo pela Publicidade para produzir anúncios na MPM Propaganda para Ipiranga de Petróleo, Lojas Renner, Embratur e American Airlines. Foi também diretor de Comunicação do Grupo Iochpe e cofundador do CENP, que estabeleceu normas-padrão para as agências de Publicidade. Escreveu o livro 'Entre Dois Verões', com crônicas sobre sua infância e adolescência na fazenda dos avós e na Porto Alegre dos velhos tempos. E-mail para contato: [email protected]

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