Vergonha de nascer e viver numa terra tão racista

Por Márcia Martins

No domingo, ao ler as primeiras postagens, ainda carentes de maiores informações, sobre as agressões verbais sofridas pelo artista Seu Jorge, num show no Grêmio Náutico União, na noite de sexta-feira, ao ser xingado pela elite da Casa Grande, que pagou um valor bem alto para estar em tal evento fechado, um nojo estranho me invadiu de imediato. Desta gente que se acha no direito de destilar preconceito. Desta gente que não respeita ninguém. Desta gente que pensa ter um rei na barriga. Desta gente que enxerga tudo do mais alto degrau da escada e que acredita que negros e negras são inferiores.

Depois, ao ouvir um áudio do presidente do clube onde as agressões ocorreram, ao tratar o caso de forma superficial, minimizando a polêmica, ignorando que as pessoas presentes naquela noite berraram sim várias vezes a palavra macaco para o Seu Jorge e sua banda e, principalmente, tentando - o que é comum em casos de racismo - culpabilizar a vítima, senti uma revolta intensa. Porque, sr. presidente, o fato de Seu Jorge ter feito um gesto político não é passaporte para ser vaiado, xingado e tudo o mais. Nem se ele se apresentar vestindo um moletom e não um traje de gala. 

Mais tarde, um misto de vergonha de nascer e viver numa terra tão racista, como tem se mostrado o Rio Grande do Sul ao colecionar vários atos odiosos da branquitude gaúcha, de um povo que fede de tanto preconceito que exala e que teme quando um negro põe parte do pé para fora da senzala, e uma culpa pela inércia de anos e anos escutando e presenciando atitudes racistas ao meu redor.

Quantas vezes não fui conivente com o preconceito ao notar a escassa presença de negros e negras na sala de aula da faculdade? Quantas vezes não fiz pouco caso no supermercado ou na loja quando o segurança seguia sem disfarçar um cliente pelos corredores pelo seu pertencimento identitário? Quantas vezes nos almoços dominicais de família não me indignei com expressões racistas repetidas pelos mais velhos? E quantas tantas vezes não estranhei um lado do banco vazio no transporte coletivo porque o outro estava ocupado por um negro ou uma negra?

Perdão, Seu Jorge, mas, infelizmente, a carne mais barata do mercado ainda é a carne negra, que vai de graça pro presídio e para debaixo do plástico, que vai de graça pro subemprego e pros hospitais psiquiátricos e que ouve xingamentos em clubes de gente branquela. Mas seguiremos na luta para acabar com tanto preconceito, discriminação e desrespeito. Minha total solidariedade!

Cada vez mais as palavras da filósofa e militante Ângela Davis precisam sair da teoria para a prática: "numa sociedade racista, não basta não ser racista, é necessário ser antirracista". 

Autor
Márcia Fernanda Peçanha Martins é jornalista, formada pela Escola de Comunicação, Artes e Design (Famecos) da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), militante de movimentos sociais e feminista. Trabalhou no Jornal do Comércio, onde iniciou sua carreira profissional, e teve passagens por Zero Hora, Correio do Povo, na reportagem das editorias de Economia e Geral, e em assessorias de Comunicação Social empresariais e governamentais. Escritora, com poesias publicadas em diversas antologias, ex-diretora do Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Rio Grande do Sul (Sindjors) e presidenta do Conselho Municipal dos Direitos da Mulher de Porto Alegre (COMDIM/POA) na gestão 2019/2021. E-mail para contato: [email protected]

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