Vira-lata não

Por Vieira da Cunha

Quer um bom exemplo do jornalismo regional que já se praticou neste mundo? Vou relembrar o que aconteceu na final da Copa do Mundo de 1958. Está registrado na história: em 29 de junho, o Brasil venceu a Suécia, dona da casa, por 5 a 2, e foi campeão mundial pela primeira das cinco vezes. Há quase setenta anos, o Jornal do Povo era um diário em Cachoeira do Sul, dirigido por meu pai Paulo. Trazia notícias locais, nacionais e internacionais, essas providas pelas assinaturas de agências internacionais como AP e AFP, e viveu naquele dia uma de suas jornadas mais memoráveis.

Era uma época em que o País começava a buscar se industrializar, estradas federais começavam a enfim receber asfalto, Brasília estava em construção, o presidente Juscelino inaugurava o primeiro reator nuclear da América Latina, e o futebol já era a paixão do brasileiro. Mas também se ressentia de um sentimento de inferioridade crônica, muito bem diagnosticado pelo que Nelson Rodrigues identificou como "complexo de vira-lata". O magistral escritor provocou a reflexão:

- Por "complexo de vira-lata" entendo eu a inferioridade em que o brasileiro se coloca, voluntariamente, em face do resto do mundo. O brasileiro é um narciso às avessas, que cospe na própria imagem. Eis a verdade: não encontramos pretextos pessoais ou históricos para a autoestima. 

Bem, ajudaria a melhorar este estado de alma a campanha da Seleção na Suécia que concluiu com a conquista do inédito galardão de campeão mundial. O feito sacudiu o país e na Cachoeira do Sul de então, nada foi diferente. A euforia adotou a alma dos cidadãos que foram às ruas comemorar, dançar, soltar fogos. As pessoas riam e se abraçavam como nunca antes pensaram em fazer e elogiavam Pelé, Garrincha, Didi, como se filhos fossem. Modesta foi somente a passeata de carros, já que eram raros os privilegiados proprietários entre os pouco menos de 100 mil habitantes que a cidade tinha na época. Nem o jornal possuía veículo. Repórteres se equiparavam aos entregadores, todos cumprindo a pé suas tarefas.

Chefe Paulo, como meu pai acabou conhecido por todos que circulavam por ali, não deixou passar a oportunidade para fortalecer ainda mais o prestígio e a comprovada credibilidade que o diário já portava. Deixara os funcionários de plantão para a produção de uma edição extra, convicto, como toda a torcida do País, de que o Brasil seria campeão. Não havia viva alma que admitisse a ideia de derrota. Por isso, antes mesmo do apito final do árbitro já era espantosa a movimentação na redação e na oficina. Os redatores sustentavam o conteúdo com notícias previamente redigidas, algumas inclusive já encaminhadas para a oficina, onde duas enormes linotipos (se você é jovem, pergunte pro Google) já resfolegavam transformando chumbo derretido em linhas de texto. Não recordo em quanto tempo a edição estava impressa, mas não deve ter durado mais de uma hora para que saísse da boca da impressora com a manchete óbvia e inevitável, em letras garrafais: BRASIL CAMPEÃO DO MUNDO.

Esta é uma das cenas que a gente não se constrange em afirmar com a maior convicção: lembro daquela tarde como se fosse hoje. No balcão que o jornal tinha internamente, a menos de dois metros da porta da rua, pilhas do impresso eram vendidas como água. A informação de que trazia uma edição extra se espalhou com uma rapidez espantosa - e homens, quase sempre eles, vinham com a nota de dois cruzeiros na mão para levar a relíquia. Atrás do balcão, para atender tanta demanda quase esquizofrênica, estavam Chefe Paulo e três de seus filhos, eu entre eles. 

Fosse um 29 de junho como os anteriores, em vez de se dedicarem a um trabalho extraordinário em um domingo, todos os funcionários estariam almoçando na festa pelos 29 anos que o Jornal do Povo completava na data. Rememorar hoje aquele episódio leva a uma reflexão poderosa sobre o dinamismo e a sensibilidade de um trabalho jornalístico que parece tão distante. Era um tempo admirável, em que a notícia fluia com naturalidade e era transformada em chumbo quente para ser impressa quase artesanalmente. Sem contar que aquele dia foi a celebração de um país que, por alguns momentos gloriosos, deixou de lado o complexo de vira-lata e se orgulhava de ser brasileiro.

Autor
José Antonio Vieira da Cunha atuou e dirigiu os principais veículos de Comunicação do Estado, da extinta Folha da Manhã à Coletiva Comunicação e à agência Moove. Entre eles estão a RBS TV, o Coojornal e sua Cooperativa dos Jornalistas de Porto Alegre, da qual foi um dos fundadores e seu primeiro presidente, o Jornal do Povo, de Cachoeira do Sul, a Revista Amanhã e o Correio do Povo, onde foi editor e secretário de Redação. Ainda tem duas passagens importantes na área pública: foi secretário de Comunicação do governo do Estado (1987 a 1989) e presidente da TVE (1995 a 1999). Casado há 50 anos com Eliete Vieira da Cunha, é pai de Rodrigo e Bruno e tem cinco netos. E-mail para contato: [email protected]

Comentários