A crueldade do tempo

Por Flávio Dutra

Minha amiga Cilene não cozinha na primeira fervura, mas ainda dá um caldo e foi com esses atributos que se apresentou na sua cidade natal para uma festa de confraternização da escola onde cursou o ensino médio. "Foi um choque", confessou mais tarde quando divagávamos sobre os reencontros com nosso passado. "Aquelas bonitinhas, filhinhas de papai, que eu invejava, agora estavam viradas em matronas. E os garotões que eu gostaria de namorar e não me davam bola, estavam quase irreconhecíveis: carecas, barrigudos e cheios de rugas", revelou.

A observação parecia conter com uma pontinha de ressentimento pelas desfeitas do passado, mas relevei a percepção ao me dar conta de que já tinha enfrentado situações semelhantes mais de uma vez. A guria cobiçada da juventude, objeto de muitas homenagens, agora mais se parece como algumas daquelas estátuas volumosas de Buda. Temo por novos encontros porque não consigo esconder meu olhar de decepção pelas marcas do tempo em amores não correspondidos. Pior quando vem a indagação: "Não estás me reconhecendo?". Sou obrigado a admitir que não.

Porque é fato, ou por puro cinismo, tenho merecido elogios pela boa forma e aparência jovial nos encontros com amigos de antanho e ex-caldáveis. O mesmo ocorreu com a amiga Cilene no seu reencontro redentor. Foi tão elogiada que se viu obrigada a procurar um espelho para honrar sua representatividade feminina e se certificar de que, realmente, os elogios tinham lá seu fundo de verdade. "Espelho, espelho meu, tem alguém mais bem conservada do que eu", confessou, durante nossa divagação, a conversa  unilateral que manteve com o espelho.

Não chego a tanto, não sou tão vaidoso, mas costumo perguntar às pessoas da mesma faixa etária e em boa forma qual o segredo de se manterem assim. Certa vez, ao fazer este questionamento a um ex-governador gaúcho, firme e forte nos seus 80 ou mais, recebi dele uma resposta direta, sem titubear:

- Sexo, meu filho, muito sexo.

Quem sou eu para duvidar de uma liderança política que conduziu os destinos do Rio Grande! Desconfio que seja o mesmo segredo da amiga Cilene.

Autor
Flávio Dutra, porto-alegrense desde 1950, é formado em Comunicação Social pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs), com especialização em Jornalismo Empresarial e Comunicação Digital. Em mais de 40 anos de carreira, atuou nos principais jornais e veículos eletrônicos do Rio Grande do Sul e em campanhas políticas. Coordenou coberturas jornalísticas nacionais e internacionais, especialmente na área esportiva, da qual participou por mais de 25 anos. Presidiu a Fundação Cultural Piratini (TVE e FM Cultura), foi secretário de Comunicação do Governo do Estado e da Prefeitura de Porto Alegre, superintendente de Comunicação e Cultura da Assembleia Legislativa do RS e assessor no Senado. Autor dos livros 'Crônicas da Mesa ao Lado', 'A Maldição de Eros e outras histórias', 'Quando eu Fiz 69' e 'Agora Já Posso Revelar', integrou a coletânea 'DezMiolados' e 'Todos Por Um' e foi coautor com Indaiá Dillenburg de 'Dueto - a dois é sempre melhor', de 'Confraria 1523 - uma história de parceria e bom humor' e de 'G.E.Tupi - sonhos de guri e outras histórias de Petrópolis'. E-mail para contato: [email protected]

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