Os Menda e eu

(Esta é uma crônica de enredo familiar. E o autor está enredado.) Para ficar registrado na história de cidade, neste sábado, 31/3/2007, acontece um …

30/03/2007 00:00
(Esta é uma crônica de enredo familiar. E o autor está enredado.)

Para ficar registrado na história de cidade, neste sábado, 31/3/2007, acontece um encontro pan-americano de uma grande, respeitável e benquista família, os Menda. São dezenas e dezenas de descendentes dos judeus expulsos há mais de 500 anos pelos reis da Espanha. Três irmãos que escaparam para a Turquia adotaram o nome da sua aldeia e deram origem à genealogia que chegou a Porto Alegre no início do século XX.

A partir do fim do Império Otomano, na Primeira Guerra Mundial, alguns Menda procuraram novos horizontes para reconstruir suas esperanças. Em 1927, David Menda e Mari, com seus seis filhos, se estabeleceram na antiga Rua do Arvoredo, atual Fernando Machado, ali na Cidade Baixa. Hoje em dia, os Menda se espalham por aqui, pelo Rio de Janeiro, por São Paulo e Piauí.

Agora os Menda desse ramo porto-alegrense - filhos, netos, bisnetos e tetranetos de David e Mari - se reúnem, num encontro comemorativo da sua longa trajetória pela humanidade afora. É a voz do sangue a reavivar tradições, a reforçar os laços, a rememorar lembranças. Se é emocionante descrevendo, imagine vivendo. E eu com isso? Tudo. Muitos desses Menda são amores meus, há quase 50 anos.

Tudo começa, para mim, entre 57 e 58. Alberto Menda e Marieta, à frente de um grupo de benemerentes, levam suas ações benfeitoras à Vila Mato Sampaio, hoje Nossa Senhora de Fátima, parte do bairro Bom Jesus. Lá, com atividades semanais recreativas e noções de economia doméstica, são pioneiros do que hoje é corriqueiro: a responsabilidade social. Tão sério é o projeto que em seguida fundam a LAN ? Liga de Amparo aos Necessitados, logo reconhecida de utilidade pública. Um centro educativo, com creche, jardim, escola técnica e artística, que fez e faz toda a diferença para os moradores da região.

Quando nos conhecemos, na recreação dos sábados, num quintal na Rua Panamá, foi interesse à primeira vista. Seu Alberto e dona Marieta traziam tudo que eu não tinha e o que mais desejava: a visão da possibilidade de uma vida menos miserável, material e espiritualmente. Além de civilidade e atenção genuína pela situação dos desassistidos da época, algo mais valioso me prendia a eles: livros, livros, livros. Que emprestavam durante o dia para quem quisesse. Ao final da tarde, recolhiam tudo e se iam, com o dever cumprido.

Eu devorava vários livros nessas ocasiões e sempre era interrompido no último. Me ofereci para ser o fiel depositário dos livros durante a semana; assim haveria oportunidade para todo mundo continuar a ler o estoque da caixa. Principalmente eu, com meus lampiões de querosene. Propus fazer o controle dos empréstimos e ser o responsável pela troca das caixas nos sábados. Foi a melhor isca que eu podia atirar a quem, como o casal, valorizava potenciais.

Alberto e Marieta Menda ajudaram e mudaram a vida de muita gente. Sobretudo a minha própria, que se divide em antes e depois deles. Décadas depois, com tantas voltas e reviravoltas de vida, ainda considero essa a mais decisiva mudança em toda a minha história pessoal. Eu não seria quem sou se não fossem eles.

Talvez atraídos pelo meu entusiasmo juvenil, talvez pela esperteza e iniciativa, quem sabe por alguma precocidade intelectual, Alberto Menda e Marieta foram mais longe do que me dar incentivos a cada sete dias. Eles simplesmente conseguiram uma bolsa de estudos para mim num internato de ricos, o Colégio Cruzeiro do Sul. Foram três anos maravilhosos em meio ao bem-estar, a um excelente ensino, a uma atmosfera liberal e estimulante. Um up-grade humano inestimável, para atualizar a gratidão.

 

Os Menda, da esquerda para a direita. Em pé: Alberto, Sarina, Eliezere Aron. Sentados: Mari (vó Maria), Mayer, Luna e o patriarca, David.

Há incontáveis detalhes inesquecíveis dessa minha saída de um mundo à la Dickens e da entrada na dignidade social. Porém, elejo aquele que é todo afetivo e verdadeiramente valioso: Alberto e Marieta me adotaram e me levaram para viver em sua imensa casa na Visconde do Herval, junto dos seus filhos. Ali "adestraram" o bicho que eu era. Por um ano inteiro, 1959, aprendi tudo que se deve aprender para conviver em público, em igualdade de atitude. Boas maneiras, noções de higiene, comportamento civilizado, enfim, virei gente. Quando fui para o internato, continuava o mesmo guri tosco (e livre e espontâneo) da vila, mas o verniz básico já impedia tantos sustos comigo.

Alberto e Marieta tiveram quatro filhos: Suzana, Nelson, Vera e Mari. Até então, nunca tinha sido tão bem tratado quanto naquela casa. Eu os tenho na conta de irmãos e deles só recebi fraternidade, e jamais de cima para baixo. Nelson (um dos organizadores deste evento) é quem mais me influenciou e de quem mais sinto falta agora que voltei pro Sul. Com Mari Menda, que carreguei no colo, compartilhei generosos trechos da vida. Tive o prazer, também, de conviver com a matriarca da família, mãe do seu Alberto, a vó Maria. Ela me enchia de agrados e nunca conseguiu pronunciar direito Guaraci. Já a felicidade do casal, só uma vez vi perturbada: Alberto e Marieta um dia brigaram por causa de um moleque que subia nos telhados.

Por proximidade, em tantas festas familiares e cerimônias na antiga sinagoga perto da Borges, acabei me envolvendo com quase todo o clã dos Menda. Eu destaco a família de dona Sarina, irmã do seu Alberto, casada com David Magrisso - eles completam o ninho em que me aninhei. Esse casal teve seis filhos: Isaac, David, Lena, Solon, Alberto e Moises Eli. Peguei parte da adolescência de alguns e meu coração guarda fotogramas domésticos que não perdem a nitidez. Para definir essa turma, a palavra mais calorosa é humor. Eles me dão saudade de quem fui.

(Tanto pelo lado do seu Alberto quanto pelo de dona Sarina, o que mais me toca nos Menda é a unidade da família, os valores ancestrais, a herança do parentesco. Num mundo cada vez mais dispersivo, isso não é pouco. Daí o sentido de resgate neste reencontro.)

Em 1961, a harmonia dessa minha família de criação foi abalada: num inesperado golpe da saúde, Alberto Menda faleceu. Era ainda moço e, claro, a vida nunca mais foi a mesma sem ele. Dona Marieta jamais casou de novo, continuou a se dedicar à caridade, os filhos se espalharam pelo Brasil e os EUA, e eu os acompanhei no Rio e em SP.

Para resumir a importância de Marieta Menda, costumo frisar que ela é como uma terceira mãe para mim. É que fui parido pela dona Hilda e criado pela avó, Florinda. A Marieta vem a ser madrinha do meu filho mais velho, Marcelo, e uma tia-avó dos outros dois. A caminho dos 85, Marieta é de uma juventude invejável, extremamente comunicativa, independente e sempre atualizada na vida. Admirável e abençoada Marieta.

Sei que este é um depoimento que nem cabe aqui (não só pelo tamanho), uma coluna de humor. Mas, sou dos que acham que sentimentos também podem ser públicos. E a família Menda, toda ela, é rica em histórias e afeições. Minha contribuição à homenagem que fazem aos seus dignos antepassados sai pelo viés da gratidão, que é uma das coisas mais duradouras que um ser humano deve alimentar.

Eu adoro os Menda, tenho um vínculo indissolúvel com eles, e o fato de eu não ter o sobrenome deles é mero detalhe. Eles são a família que eu não tive de berço. Vida longa a cada um dos meus amores chamados Menda.