Um flâneur em Lisboa

"Ó mágoa revisitada, Lisboa de outrora e de hoje! Nada me dais, nada me tirais, nada sois que eu me sinta". Alvaro de Campos. …

17/12/2015 17:31 / Atualizado em 23/12/2015 17:08
"Ó mágoa revisitada, Lisboa de outrora e de hoje! Nada me dais, nada me tirais, nada sois que eu me sinta". Alvaro de Campos.

*** Muitos anos antes dos livreiros descobrirem o filão editorial dos guias turísticos, um poeta português dedicou alguns anos de pesquisa e flânerie para escrever um livro sobre a cidade que tanto amava - o guia "Lisboa - o que o turista deve ver", publicado em 1925. Fernando Pessoa criou um roteiro para Lisboa, replicando o que o flâneur Charles Baudelaire havia feito em Paris.

*** Curiosamente, existe uma forte ironia em um roteiro de viagem escrito por Fernando Pessoa, que detesta viajar. Salvo algumas idas e vindas a cidades vizinhas, deixou Portugal raras vezes, como quando morou com a família na África do Sul. Mas, mesmo assim, se permitia sonhar com as longas viagens por mar, como deixa transparecer em Ode Maritima: "Ah, as viagens, as viagens de recreio, e as outras, As viagens por mar, onde todos somos companheiros dos outros Duma maneira especial, como se um mistério marítimo Nos aproximasse as almas e nos tornasse um momento Patriotas transitórios duma mesma pátria incerta, Eternamente deslocando-se sobre a imensidade das águas, Grandes hotéis do Infinito, Oh transatlânticos meus!" Mas, se Fernando Pessoa não foi um viajante frequente, manteve sempre uma intensa e profunda relação com a cidade de Lisboa, que ele descreveria apaixonadamente no enigmático "O Livro do Desassossego". Publicado em 1982, quase 50 anos depois de sua morte, reúne poemas avulsos de seu espólio: "Sou qualquer coisa que fui. Não me encontro onde me sinto e se me procuro, não sei quem é que me procura. Um tédio a tudo amolece-me. Sinto-me expulso da minha alma." Quem assina o Livro é Bernardo Soares, um dos menos conhecidos heterônimos do poeta. Que, não por acaso, é apresentado como guarda-livros de escritório da Baixa - onde o próprio Fernando Pessoa trabalhou como tradutor em uma editora. Ele fala de um encontro numa "casa de pasto" da Baixa. Na verdade, Bernardo Soares é uma das máscaras que Fernando Pessoa usa para compor um diário pessoal, onde desfilam inquietação, tédio, angústia e o amor pelas ruas, ladeiras e casarões de Lisboa. E deixa seu alter ego declarar: ?Eu adoro a luz destas praças solitárias, intercaladas entre as ruas com pouco tráfego, onde meu passado é tudo o que não consegui ser.?

*** Existe uma fascinante semelhança entre as flâneries de Fernando Pessoa e de Charles Baudelaire. Em momentos diferentes, os dois poetas assistem angustiados a transição de Lisboa e Paris para o modernismo. O flâneur de Baudelaire se sente fora de casa. O do poeta português se sente permanentemente caseiro. Mas ambos, à sua maneira, louvam as "praças solitárias" de Lisboa e os "mauvais lieux" de Paris, por onde Baudelaire se deixa levar em andanças erráticas por labirintos de velhos quartiers. Para Baudelaire, o ato de deambular como um vagabundo errante era um exercício de contemplação artística. Ele observa as mudanças que o modernismo imprime na paisagem parisiense: "Paris muda! Mas nada em minha nostalgia mudou! Novos palácios, andaimes, lajedos, Velhos subúrbios, tudo em mim e? alegoria, E essas lembranças pesam mais do que rochedos". Enquanto isto, Fernando Pessoa empreende pelas ruas lisboetas uma viagem ao passado, dizendo de sua nostalgia de flâneur / navegante: "Vou para o meio de Lisboa. Não trago nada e não acharei nada. Tenho o cansaço antecipado do que não acharei, E a saudade que sinto não é nem no passado nem no futuro. Deixo escrita neste livro a imagem do meu desígnio morto: Fui, como ervas, e não me arrancaram".

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