Um rio de lembranças

“No porta-malas do meu automóvel Levo um anjo escondido…" (Mario Quintana) *** Era uma pequena emoção na rotina da redação, passar pela mesa do …

26/11/2015 17:00 / Atualizado em 04/12/2015 16:56
?No porta-malas do meu automóvel Levo um anjo escondido?" (Mario Quintana)

*** Era uma pequena emoção na rotina da redação, passar pela mesa do poeta e ver se ele havia esquecido algum rascunho com versos, entre os papéis espalhados sobre a mesa. Eu nunca tive sorte, mas um colega, novato como eu, acertou na loteria. Ele guardaria como um tesouro a folha de papel amarfanhado, com uma quadrinha rabiscada a esferográfica: "Três amores? Quem me deu Tão estranha sorte assim? Três amores, tenho-os eu E nenhum me tem a mim!."

*** Voltar àquela sala de redação, décadas depois, foi como ressuscitar velhas emoções e experiências. Algumas mais venturosas, outras um tanto doloridas. Subi as escadas, caminhei entre as velhas mesas. Aqui e ali, remanescentes de outros tempos me saudavam. Faltavam muitos, deveriam ter tomado outros rumos. Já não lembrava o nome de todos, mas a magia dos velhos tempos estava lá. Nas fotos amareladas nas paredes, nos lentos ventiladores de teto e nas poucas máquinas Underwood e Royal, ainda funcionando. Alcancei uma janela aberta (seria ali que ficava minha antiga mesa?) e apoiei-me na sacada. Exatamente onde nos debruçávamos, quando algum acontecimento agitava o centro do mundo - a Rua da Praia. Naqueles dias, a Praça da Alfândega funcionava como tambor de ressonância da cidade. Ali, jornalistas se encontravam nas calçadas de pedras portuguesas, conversando, entrando e saindo dos cafés. Os mais assíduos eram os redatores do Suplemento Literário, que era publicado aos sábados. Um colorido grupo de intelectuais, de escritores, colunistas e poetas, incluindo o mais festejado - e o mais retraído -, Mario Quintana. Ele se postava em um dos bancos da praça, fumando seu interminável cigarro, antes de voltar à redação e terminar de escrever seu Caderno H.

*** Arrisquei uma conversa com os colegas que ainda continuavam na profissão, procurando pelo encantamento que animara minha geração de jornalista. Logo percebi que a realidade era outra e que os velhos sonhos deviam ter ficado em algum lugar do caminho. Devia ser o único com saudade dos velhos tempos, ao mesmo tempo em que percebia que os ex-companheiros eram completos desconhecidos. Então, em um acordo silencioso, nossas conversas se resumiam na troca de poucas palavras: "- Bons tempos aqueles?" Ou com um rasgo de nostalgia: "- Nós éramos felizes e não sabíamos?" Voltando pelas calçadas de pedras portuguesas, que tantas vezes percorrera em minhas idas-e-vindas, me descobri recitando para mim mesmo os versos do poeta:  "Em que mundo vim parar, Que nada reconheço?"