Camila de Moraes: Arte e Cultura que correm nas veias

Ensinamentos de família foram fundamentais para formar a diretora e roteirista de Cinema

Os anos eram 1980. A principal lembrança de infância viria a ser, aos domingos, atravessar o Parque da Redenção e ingressar em um ônibus no sentido até a Lomba do Pinheiro, em Porto Alegre. A casa dos avôs seria o destino da família Lopes, que tinha, nos matriarcas, um pilar que sustentava amor, carinho e ótimas memórias. E foi ali, também, que se iniciaram os ensinamentos das raízes afro-brasileiras, fundamentais para criação do que veio a se tornar a diretora e roteirista de Cinema Camila Lopes de Moraes.  

São nesses momentos que o ditado "a fruta não cai longe do pé" faz todo sentido. Afinal de contas, a gaúcha que reside em Salvador é filha da atriz de Cinema, teatro e ativista do movimento negro Vera Lopes, bem como do jornalista e escritor Paulo Ricardo de Moraes. Os pais a ensinaram desde muito cedo que a cultura transforma, abre horizontes e serve de palco para debater temas essenciais para o desenvolvimento da sociedade. 

Nascida e criada no bairro Bom Fim, na capital gaúcha, a filha caçula teve uma infância tranquila e afetuosa. Com os pais separados desde os seus três anos, Camila e os irmãos foram criados, na maior parte do tempo, pela mãe, apesar do pai ser sempre presente. Por ser a mais nova de um trio, não brincava muito com os irmãos, uma vez que seus horários da escola não combinavam com os dos mais velhos. 

Enquanto Camila estudava no turno da manhã, Kenia e Horácio cumpriam os compromissos escolares na parte da tarde. Ainda assim, a irmã mais velha ficava responsável por ela. Para qualquer que fosse o lugar, a mãe levava os filhos. Por ser atriz, ela os carregava onde podia, para que pudessem presenciar e acompanhá-la em ensaios para peças teatrais, cenas de filmes, entre outras atividades. 

Para ajudar a complementar a renda de artista, a mãe das crianças aprendeu a fazer tranças e oferecer esse tipo de serviço a quem tinha interesse. O ensinamento foi passado para as meninas e, nos dias atuais, Kenia trabalha com isso e é especialista. "Hoje, minha irmã é uma pessoa bem-sucedida no segmento", conta Camila, orgulhosa.  

O Cinema

Antes de se tornar uma cineasta premiada, Camila experimentou a profissão de professora. Durante o ensino médio, surgiu a oportunidade de realizar o aproveitamento de estudo na escola estadual Instituto Flores da Cunha. Após o curso, habilitou-se a dar aula para os anos iniciais, por meio do título de Magistério. Para ela, aquela instituição de ensino era uma referência, bem como toda a história que permeia o grande prédio localizado próximo ao Parque da Redenção. "Era uma escola requisitada. Para entrar, tinha que passar por um sorteio", lembra. 

Apesar de gostar das experiências que teve nos estágios obrigatórios, Camila achou que ser professora ainda não era exatamente o que queria. Anos depois, descobriu que a Comunicação poderia oferecer meios que a agradassem mais. E foi por conta de uma bolsa de estudos que ingressou no extinto curso de Jornalismo do Centro Universitário Metodista IPA, na turma de 2006. Ocorreu ali o primeiro trabalho audiovisual que norteou sua carreira. 

Durante as aulas práticas de Jornalismo, a guria tímida em frente às câmeras percebia ter mais jogo de cintura por trás delas, pois levava jeito para dirigir e roteirizar histórias de vida. Por meio de uma disciplina, Camila produziu e corroteirizou o seu primeiro documentário, o 'Mãe de Gay'. A obra foi vencedora de dois Galgos de Ouro no Festival Universitário de Gramado, em 2008. 

A partir disso, interessou-se ainda mais por essa arte. Ao longo da carreira, o Cinema se tornou uma ferramenta de protesto contra o racismo. Ao finalizar o Jornalismo, especializou-se em Audiovisual pela Universidade Federal da Bahia. "As referências que contavam a história dos negros eram escassas. Isso me motivou a pesquisar ainda mais sobre o tema", comenta. 

Hoje, Camila é diretora de diversas obras, como o aclamado 'O Caso do Homem Errado', documentário que aborda a história de Júlio César, morto pela Polícia Militar do Rio Grande do Sul ao ser confundido com um assaltante, em 1987, em Porto Alegre. O filme chegou a entrar na lista de pré-selecionados para representar o Brasil e concorrer ao prêmio de Melhor Filme Estrangeiro no Oscar 2019. Em função do documentário, Camila se tornou a segunda diretora negra a ter um filme exibido em circuito comercial. Além disso, a cineasta também dirigiu os curtas-metragens 'A Escrita do Seu Corpo' e 'Mãe Solo', produzido durante a pandemia. 

Salvador

A paixão por Salvador surgiu quando Camila ainda era jovem. "Sempre que podia, nossa mãe nos levava", recorda. Ela conta que, no início, as tentativas de viagens eram sempre para outros lugares; entretanto, a Bahia se tornou o local mais acessível para a família passar as férias. A partir disso, surgiu o sonho de morar na capital baiana, por conta de toda a cultura que o município representava em sua vida. Na estadia, passavam na casa de um tio, que era um grande colecionador de fitas VHS. "Acho que ali foi a primeira referência de filmes negros que levei pra minha vida profissional", lembra. 

Ao se formar em Jornalismo, ela teve a oportunidade de passar alguns dias a mais em Salvador. Isso porque ganhou, de presente de formatura, uma viagem para a cidade e pôde ir sozinha pela primeira vez. Na época, a cineasta estagiava no caderno de Cultura do jornal 'O Sul', porém, seu contrato logo terminaria. Foi quando Camila decidiu avisar os familiares que ficaria na capital da Bahia e faria sua vida por lá. 

Há 12 anos na capital, a jornalista constituiu toda a vida e carreira na cidade. Há um ano, Camila é noiva do também cineasta baiano Uilton Oliveira que, hoje, reside no Rio de Janeiro. O casal se conheceu em um festival nacional de cinema negro e devido a alguns contatos de amigos em comum. O início do namoro se deu a partir de conversas, quando ele estava gravando um filme próximo da casa de Camila.

Agitada 

Sempre em viagem, envolvida em diversos projetos, a jornalista tem uma rotina agitada e não se vê com tempo para pensar no futuro, como, por exemplo, ter filhos. Por enquanto, a herdeira é a cachorra Namíbia, a labradora que, há nove anos na família, já está acostumada com o dia a dia movimentado da mãe humana. No entanto, quando está em casa, além de dar toda a atenção para a sua companheira, Camila aproveita o litoral de Salvador para se purificar. "Eu amo a praia e realizar caminhadas na beira, mas com a pandemia, acabei diminuindo", lamenta. 

Em seu cotidiano, a cineasta inclui uma agenda cheia de projetos cinematográficos, oficinas, palestras e curadorias. Apesar de ter tentado a profissão de professora, Camila só se vê dando aula se esta fizer parte de um projeto social, fora do convencional, que consiga conciliar com naturalidade os compromissos pessoais. O segmento cultural é o que realmente a faz sentir prazer em criar novas propostas de trabalho. Relatar histórias e vivenciar as diversas culturas são a missão principal da profissional, que é inquieta por novidades.   

O perfeccionismo e a teimosia são os adjetivos que considera apropriados para ela própria. "Eu também sou uma pessoa bastante teimosa. Até me mostrarem o contrário, sigo com a minha convicção", confessa. Apesar disso, Camila está sempre na tentativa de dar o máximo em tudo que faz. Suas obras são intensas e de muitas pesquisas e qualidade técnica apurada, que mostram uma personalidade definida, bem como o modo forte e sensível de dirigir. 

Em Salvador, não existe a famosa 'Ala a minuta' - tradicional prato em alguns estados brasileiros, feito de arroz, feijão, bife, batata frita, ovo frito e salada. "Por conta disso, esse prato tem sido a minha comida preferida", diz, aos risos. Feijão preto também não se encontra em Salvador, pois é muito cozinhado o vermelho.  

Estabilidade

Um dos sonhos de Camila é consolidar sua estabilidade na carreira de Audiovisual. Recentemente, abriu, em parceria, uma produtora que ajuda a distribuir ainda mais obras voltadas ao segmento negro. O projeto de futuro é empregar mais pessoas e ter uma equipe grande, além de remunerar bem todos que estão envolvidos nos projetos. 

Com o lema de vida 'Nenhum passo para trás, nem que seja para tomar impulso, porque todos são para frente", daqui a 10 anos, a profissional pretende alçar voos maiores e realizar projetos no exterior. Para ela, uma das realizações de vida foi poder reconhecer que poderia atuar com o audiovisual. "Foi um dos momentos de maior alegria, perceber que pessoas negras estavam me encorajando a fazer o mesmo", conta. As raízes afro-brasileiras são seus exemplos de vida, estão no DNA. Assim, ela aprendeu a amar tudo que faz. 

Sobre referências, Camila afirma que tem muitas: na música, culinária e vestimentas. Porém, a principal delas é a família. Emocionada, ela recorda que fez um trabalho na faculdade para o qual precisou pesquisar sobre a história de vida de seus avós. "Um relato muito bonito", garante. 

Seu pai, filho único, participava e ajudava os pais dele nos deveres de casa. A avó fazia comida para fora, enquanto o avô saía para vender todos os produtos feitos pela esposa. Camila rememora que foi a um evento negro internacional e se emocionou ao ouvir outras histórias parecidas. Naquele momento, pensou no orgulho que tinha dos seus familiares e ancestrais. "Foi quando percebi que os meus avós foram os primeiros empreendedores da família", finaliza. 

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