Clara Corleone: Sem medo de ser ela mesma

Um livro embaixo do braço, um copo de cerveja gelada, um bloco de Carnaval e um bom papo com as amigas. Ela só quer ser feliz, do jeito que quiser

Clara Corleone - Crédito: Carol Disegna

A página em branco. Percebo que não me dei conta do tamanho do desafio que seria escrever sobre uma escritora. Coloco João Nogueira, seu músico preferido, para tocar no fundo. Um auxílio para inspirar a mente e os dedos a colocar em palavras a grandeza e intensidade de uma mulher que sabe exatamente quem é, do que gosta e o que quer. Autora dos livros 'O homem infelizmente tem que acabar' (ZOUK, 2019), 'Porque era ela, porque era eu' (L&PM, 2021) e 'Predadores' (L&PM, 2022), Clara Corleone faz jus ao significado de seu primeiro nome, do Latim, brilhante, ilustre.

Formada em Artes Dramáticas pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), escolha que fez aos 17 anos sem hesitar, ela levou bem mais tempo para, enfim, se reconhecer como escritora. Ainda criança, começou a juntar as letras em diários. No ensino médio, viveu sua primeira experiência como 'escritora de verdade'. Guiada pela música de Elis Regina, produziu a peça 'Como nossos pais'. Depois disso, no final da faculdade, a escrita cruzou novamente seu caminho, pois, como Trabalho de Conclusão de Curso (TCC), criou um monólogo. 

"Eu publicava muitos textos no Facebook, as pessoas comentavam, vários viralizaram, e começaram a questionar por que eu não publicava. A partir daí, escrever foi se tornando uma profissão, mas só talento não basta", conta Clara, que lembra com exatidão do dia que, para si mesma, se tornou escritora. "O negócio ficou sério em 2019, quando a Karina, editora da ZOUK, esteve presente em um dos meus saraus literários e, ao final, me procurou e comentou sobre publicar e eu disse 'vamos'. Era 14 de março, um ano após o assassinato da Marielle Franco. Virei para os meus pais e disse: 'Me convidaram pra publicar'. Em seis meses, o livro estava pronto".

Em um resgate dos próprios pensamentos, adaptou seus trechos sobre o machismo e deu vida à obra que leva como subtítulo 'Crônicas, deboches e poéticas'. A deputada federal Fernanda Melchionna e a também escritora Joanna Burigo eram as convidadas do sarau. Esta segunda tinha um selo na editora, 'Casa da mãe Joanna', e foi mentora de Clara na transformação de suas linhas em um livro - premiado e em sua sétima reimpressão. "Sem ela, 'O homem infelizmente tem que acabar' não existiria. Ela fez um trabalho fenomenal e eu tenho muita gratidão", enfatiza, complementando que teve, ainda, como madrinha a escritora Martha Medeiros.

Guria do Bom Fim

Nascida e criada no bairro Bom Fim, ela é uma legítima porto-alegrense (com uma quedinha por Buenos Aires e Rio de Janeiro). Entre seus lugares favoritos no mundo, está a famosa Lancheria do Parque, onde 'bate o ponto' semanalmente para ler, beber, comer e encontrar os amigos. A combinação perfeita é quando junta a torrada com presunto, ovo e queijo, e uma cerveja gelada. A relação é tão próxima que Clara até mesmo já exibiu suas habilidades como atriz com a Lancheria como cenário nas gravações da série 'VidAnormal', que passava na TVCom e Ulbra TV, entre 2007 e 2008. 

E é nesse mundo que circunda o Parque Farroupilha (Redenção, para os íntimos) onde fica, também, a Livraria Paralelo 30, palco dos saraus literários que ela organiza há cinco anos. Bimensalmente, com o próximo previsto para acontecer agora em março, Clara convida personalidades para trocar ideias e experiências a partir da leitura. Não muito longe dali, o Centro Histórico da Capital também tem o coração da escritora. "Meu programa preferido, quando tenho folga, é ir pro Centro visitar uma exposição, qualquer uma. Desbravar os sebos, passear pela Casa de Cultura Mario Quintana, visitar o quarto do poeta, assistir à próxima sessão de cinema de lá e, para finalizar, tomar uma cerveja", compartilha.

Desde pequena, uma roda de samba a faz se sentir em casa. Se quiser encontrá-la, oriente-se pelas melodias de Paulinho da Viola, Ivone Lara, Martinho da Vila, Mart'nália e tudo que é bem brasileiro. E se for Carnaval então, formou-se o dia ideal. Seja como foliã do Bloco da Laje ou musa do No Caminho Te Explico, Clara aproveita a festa até o último segundo. E caso você não a conheça, principalmente se você nessa frase for um homem, não pense nem por um instante que seu corpo de biquíni é um convite. Ela é inteiramente dela.

8M

Ela é feminista. Disso, não há dúvida. No entanto, ciente de seus privilégios - mulher branca, cis, heterossexual, com corpo 'padrão', intelectualmente educada e oriunda da classe média -, prefere deixar calar e ouvir aquelas que são, desde os primórdios da humanidade, marginalizadas. Mulheres pretas, mulheres trans, mulheres pobres, mulheres gordas, mulheres profissionais do sexo, mulheres invisíveis. Aos 37 anos, comemora a maturidade como um trajeto permanente de aprendizado. "Minha frente pende com mais força para o combate ao machismo", enfatiza.

Coincidência ou não, Clara recebeu o nome da mulher que, em 1910, sugeriu que o Dia Nacional das Mulheres (criado nos Estados Unidos em 1909, após a marcha de Nova York, onde 15 mil mulheres foram às ruas exigindo redução das insanas jornadas de trabalho, salários melhores e direito ao voto) fosse reconhecido como Internacional. Clara Zetkin, ativista do Partido Comunista Alemão, fez a proposta durante uma conferência na Dinamarca, onde havia 100 mulheres de 17 países presentes, que concordaram de forma unânime. 

Para o comércio, a data foi reduzida a vender presentes. Para (muitos) homens, uma oportunidade de mostrar seu 'amor' pelas mulheres - apesar de os dados (em 2023!) mostrarem que, no Brasil, a cada seis horas uma mulher é morta; a cada 8 minutos, uma mulher é estuprada; a cada 22 minutos, somente no Rio Grande do Sul, uma mulher é agredida. E, pelo 14º ano consecutivo, o País lidera o ranking como o que mais mata pessoas transsexuais. 

Para Clara, um lembrete de que não somos todas livres. "Para mim, o maior problema é o feminicídio. Mulheres mortas como moscas. E não só pelos homens, mas pelo próprio Estado, enquanto o aborto segue tratado como um crime e não é legalizado", pontua. Em seu livro mais recente -  'Predadores' -, aliás, evoca o sentimento ancestral que as mulheres tentam sufocar diariamente para poderem viver: o medo de estar à mercê dos homens.

Nem todo amor é um romance

"Não sou mais casada, graças a Deus", responde Clara ao ser perguntada sobre seu status de relacionamento amoroso. Solteira convicta, levanta, enfática, a bandeira da liberdade das mulheres de fazerem sexo porque gostam, sem serem taxadas de vagabundas ou ouvirem dos outros que nenhum homem vai as querer se elas continuarem se comportando assim. O que não exclui, de modo algum, carinho e respeito. "Tenho alguns relacionamentos com homens que sabem que eu fico com outras pessoas, mas que duram bastante tempo e é super tranquilo. O modelo tido como tradicional apenas não é pra mim", explana. 

A normalidade com que fala sobre as relações nada tem a ver com 'dor de cotovelo'. Pelo contrário, amor nunca faltou na vida da escritora. Só que nem todo amor é um romance. Filha do engenheiro Figueiró e da dona de casa Ana Regina, casados há quase 50 anos, Clara não precisa de nem um segundo para dizer o quanto a relação com a família é maravilhosa. Irmã de Carolina, Joana, Pedro e Ana Helena, divide com eles as alegrias e as tristezas do dia a dia, sustentada pelo elo inquebrável de afeto que os une, não unicamente por terem o mesmo sangue, mas porque amam uns aos outros genuinamente.

Não importa o quê, se for para estar com eles, ela troca qualquer programa. O ambiente fica ainda mais preenchido com as duas 'filhas' caninas, que dividem o teto com Clara desde 2012 e 2013, Billie Holiday e Ella Fitzgerald, respectivamente. As sobrinhas, Manu e Isabelita, completam o time. E, em tudo, sente-se apoiada e encorajada pela família, que sempre demonstrou como prioridade número um a felicidade dos filhos. "Eles sempre estão ao meu lado. Estavam no primeiro livro, no segundo, no terceiro. Se eu for ler um versinho numa capela, lá estão eles. Em tudo", salienta. 

Uma figura importante dessa história foi o avô materno, Wilmar. Médico, resolveu aos 60 anos cursar Filosofia. Vinha de Barra do Ribeiro para Porto Alegre estudar e se formou. Extremamente gentil, genial e um exemplo de ser humano são alguns dos adjetivos usados pela neta para descrever aquele que foi sua primeira inspiração e magnífico incentivador. "Ele sempre leu muito e eu herdei o gosto. Sempre andei com um livro embaixo do braço", diz. 

Um pouco Marilyn, um pouco eu

"Se você não pode lidar comigo no que tenho de pior, então você pode ter certeza que não merece o meu melhor." A frase não é de Clara, mas poderia ser. A conexão com sua maior 'ídola', a modelo, atriz e produtora cinematográfica Marilyn Monroe é quase cósmica. Retratada como símbolo sexual, é comumente lembrada por sua beleza física, a norte-americana, que morreu aos 36 anos, foi muito mais do que isso. "Marcar Marilyn como uma mulher burra é uma das maiores mentiras que Hollywood inventou", adverte.

Entre as similaridades, para além do fato de ambas serem mulheres, Marilyn, assim como Clara, amava ler e estudar. Era politizada e se envolvia em causas sociais. Os cartazes da artista espalhados pelo apartamento não deixam suspeitas, ela é um ícone na vida da escritora que, a propósito, pensa em atuar ou escrever algo sobre Marilyn. E por falar em política, esse é outro tópico bem definido para Clara. O interesse surgiu ainda quando criança, com as primeiras leituras sobre a Ditadura Militar no Brasil e na América Latina. Quando coordenou a ONG Minha Porto Alegre, atuando em prol, especialmente, das mulheres e da população de rua, firmou o posicionamento. "Sou absolutamente de esquerda e esse é um valor inegociável. Inclusive, é um impeditivo para mim quando se trata de uma amizade ou relacionamento", frisa.

Citando um defeito, a ansiedade é uma luta diária. Assim como sua diva, em um mercado dominado por homens, tem como obstáculo para autoconfiança e constância o autoboicote. Ela é incrível e sabe disso, mas, às vezes, a realidade de ser mulher pesa mais que o outro lado da balança. Escrever é "o troço" que ela mais gosta, como adora dizer. Além de suas iniciativas individuais, sobre as quais podemos adiantar que há um quarto livro, sobre luto e amadurecimento, em aprovação com a editora, Clara também está escrevendo o que pretende ser sua quinta obra: uma história de amor. Além disso, trabalha como redatora para uma empresa de São Paulo e foi convidada para participar de uma coletânea, com um conto, mas os detalhes ainda são segredo.

Uma qualidade a destacar é ser uma pessoa carinhosa. Parte disso veio de sua referência, a mãe. "Ela é uma mistura de bom humor e força. Positiva, está sempre pra frente, não importa o que aconteça. É impressionante", elogia, seguindo: "Minha mãe tem um amor pela vida e por nós, e sabe viver. Aprecia as coisas simples e boas. É inteligente, humilde, engraçada, acolhedora. Ela é o máximo". 

Quanto mais próximo, melhor

Subjugada pela crença de que devia ter uma aparência x e y, a escritora enfrentou a bulimia - transtorno alimentar grave, marcado por compulsão, seguido de métodos para evitar o ganho de peso - durante a adolescência. Um de seus muitos empregos foi em uma clínica de estudos sobre obesidade. E ali a mentalidade começou a mudar. Mas foi na pandemia de Covid-19 que a curiosidade mais engraçada, como define ela, sobre si emergiu. "Sou embaixadora de uma plataforma fitness", assume. "Como boa comunista que sou, lembrei de quando Angela Davis e Olga Benário foram presas e criaram um programa de exercícios físicos para não ficarem paradas."

A chave, para ela, é o equilíbrio: a cervejinha em uma mão, o copo de água na outra; glitter a perder de vista no Carnaval, pele sem make nos outros dias; um batom vermelho - sua cor preferida - de vez em quando. Não se trata exclusivamente da estética, mas também da disposição, força e energia para encarar suas mil versões. "Mudou a minha vida e quero incentivar outras mulheres a experienciar o mesmo", argumenta. 

E como ensina às suas alunas e alunos nos cursos de escrita criativa, quem quer escrever tem que ler. E, para ela, "quem te ensina a escrever são os livros que vais lendo e a vida que vives. Tenho uma frase que falo muito do Martin Scorsese que é 'o mais pessoal é o mais criativo'. Eu escrevo sobre o que sou, o que sinto, o que acredito, o que me incomoda, o que é parte de mim", afirma.

E para quem estava atribulada e ansiosa para iniciar este Perfil, o difícil agora é parar de escrever. Clara é tudo isso e mais um pouco. Precisaria de uma biblioteca inteira para, talvez, alcançar a proeza de contá-la. 

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