Clarissa Lima da Silva: Simplicidade e fortaleza

Jornalista de formação, ela é reconhecida pelo profissionalismo e competência quando o assunto é diversidade

Clarissa Lima da Silva, assessora de diversidade da Secretaria Estadual da Cultura - Arquivo Pessoal

Em Porto Alegre, está localizado um bairro que fica a um pé da zona norte e outro da zona central da cidade. Trata-se de Rio Branco, considerada uma das regiões mais nobres da capital gaúcha. Antes disso, no entanto, no final do século 19 e início do século 20, chamava-se Colônia Africana, por conta da formação de sua população. E foi ali, nesse lugar carregado de raízes pretas, que, em 1976, nasceu Clarissa Lima da Silva. 

Mulher negra e forte. Quem a conhece pode se encantar rapidamente com a beleza e simpatia. Dona de um black power cheio de personalidade, ela ainda impõe respeito e atitude na oratória. A jornalista de formação é reconhecida por muitos pelo profissionalismo e competência quando o assunto é diversidade. Fã de diversos gêneros, sobretudo os que envolvem a música negra, é também extremamente organizada e metódica, características que acredita serem qualidade e defeito, mas não os principais, pois se considera "só uma pessoa chata em relação a isso". 

A simpatia salta aos olhos até no momento em que revela o time do coração. Sem fanatismo, aprendeu a torcer pelo Grêmio ainda jovem, pois presenciou comemorações do pai, além de grandes elencos do clube que conquistou muitas vitórias nos anos de 1980. Porém, com um sorriso, responde: "Sou gremista, mas qualquer cocada ou quindim que me ofereçam, posso virar colorada", diz, aos risos. "As pessoas me ganham pela barriga", completa. 

De portas abertas 

Com um bom humor afiado e constante, mostra ter facilidade de lidar com qualquer tipo de pessoa, mesmo que possa se arrepender depois. "Eu sou assim mesmo. Se pego o ônibus cheio, converso com o motorista, cobrador, gari da rua e todos que estão ao meu redor, e fazem parte do meu dia a dia", explica. Ao encarar a rotina de forma leve, jeito irreverente e espontâneo, conta que já recebeu críticas de muitos homens, que entendiam como sinais de segundas intenções: "Em uma sociedade machista como a nossa, isso é extremamente comum, mas é somente a forma como levo a minha vida, de portas abertas em todos os ambientes em que frequento". 

Clarissa diz ser alguém com capacidade de ser várias ao mesmo tempo, como é o caso profissional, já que, além de jornalista, atua como modelo e assina desenhos neste segmento. Tem ao lado o companheiro de vida, Nilton César Flores, há oito anos, e com ele gosta de assistir a séries e filmes. O que não dispensa sempre que pode é o ciclismo, uma de suas paixões. Desde muito cedo, a filha da dona Zélia Lima e do seu José da Silva entende que recebeu uma ótima criação dos pais. "Na época, minha mãe já se mostrava uma mulher à frente do seu tempo, pois não colocou o mesmo sobrenome do meu pai", comenta, entre risos. 

Para comer, também opta pela simplicidade. "Arroz e feijão." Simples assim. Esse é o prato favorito de Clarissa, pois acredita ser a junção perfeita de qualquer gastronomia. "Existem vários pratos que eu adoro, mas, na dúvida, faz o arroz e o feijão", pontua. Apesar de toda leveza, destaca que um dos grandes defeitos é sua desconfiança. "Acho que esse meu processo de insegurança e desconfiança está muito relacionado com a essência do que os povos negros vivem, por não se acharem, muitas vezes, capazes de realizarem suas coisas", reflete.

Infância de aprendizados

Longe da rotina confortável que a maioria das pessoas do bairro Rio Branco tinha, Clarissa e a irmã mais velha Patrícia se mudavam muito com os pais para acompanhá-los em suas profissões - seu José foi zelador de prédios e dona Zélia, empregada doméstica nos diversos apartamentos daquela região. Portanto, o quarteto morou em casas reservadas para os empregados de condomínios. "Fomos muito felizes e os nossos pais não deixaram faltar nada. Tive uma convivência muito pacífica com as amiguinhas dos prédios e uma qualidade de vida muito boa, por conta do bairro em que morávamos", admite.

Não foi só isso que marcou a infância de Clarissa que, apesar de distante de traumas, aprendeu as diferenças, fatores fundamentais que a tornaram uma mulher decidida a lutar pela causa racial. Era o caso, por exemplo, de brinquedos que seus amigos tinham, mas ela não poderia ter, ou também o fato de, apesar de morarem no mesmo local, ela precisava entrar pelo acesso da área de serviço.

Apesar do dia a dia agitado dos pais para "levarem o pão para casa", as meninas tiveram tranquilidade para focar nos estudos, porém, sempre alertadas de que não teriam condições para bancar os valores das instituições privadas de ensino superior. O interesse pelo Jornalismo surgiu aos 18 anos, sempre a partir de uma vontade em se comunicar, expressar e mudar o mundo. A Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs) nunca foi foco de Clarissa, uma vez que percebia "a segregação branca no ambiente". O objetivo, então, era fazer vestibulares para conseguir bolsas acessíveis aos valores que poderia pagar.

Quando entrou na Universidade do Vale do Rio do Sinos (Unisinos), não demorou para conseguir um estágio na área, o que era de se esperar de uma guria com vontade de vencer. Ela sabia que não poderia reclamar por receber comida e cama arrumada todos os dias. "Na época, foi um acordo com a minha mãe", conta. Às vezes, faltava dinheiro para o trem, já que a instituição fica em São Leopoldo, e nessas horas conseguia caronas na beira da estrada até um lugar mais próximo da instituição de ensino. "Corria muitos riscos com isso. Como eu era muito jovem e tinha colegas na mesma idade, ríamos da situação, pois não havia muito o que fazer", lembra. E foi neste cenário que começou a compreender os desafios.  

Luta pela diversidade

A televisão é uma de suas paixões. Formada em 2001, não demorou muito para trabalhar na profissão, e junto com as experiências, veio uma dura realidade. Comentários como "Cabelo muito grande atrapalha o chroma key", "Alisa o cabelo para melhorar", "Os lábios dela são muito grossos" ou "A testa é muito grande" faziam parte da rotina diária. Por conta deles, passou a ser antipática mesmo, quando não via pessoas pretas naqueles espaços, pois os entendia como nocivos e se protegia. Clarissa crê que o racismo estrutural não mata só física, mas também psicologicamente. "A sensação que tenho é que nós, negros, estamos sendo sempre obervados, mesmo que seja para elogiar", reforça. 

As vivências criaram uma certa casca para se superar e lutar ainda mais pelos espaços dos povos negros. Em 2020, foi convidada para integrar uma pasta da Secretaria da Cultura, como assessora de Diversidade. Tem feito a diferença em diversas iniciativas do órgão, ao reconhecer a preocupação em trabalhar com o tema. "Para mim, é uma oportunidade e uma honra imensa desempenhar essa função, onde não sou somente uma jornalista, mas a responsável por fazer a interlocução com diversos agentes culturais." 

A TVE, emissora pública de televisão, sempre foi um desejo de Clarissa. Uma das realizações pessoais foi receber a notícia de que havia passado no concurso para servidora do veículo de Comunicação do Estado, em 2014. Lá, atuou como apresentadora, repórter e ajudou a produzir diversos programas ao lado de personalidades como Domício Grillo e Fernanda Carvalho. 

O lugar foi ainda palco para o encontro do grande amor. "O ditado que diz 'onde se come o pão não se come a carne' não é bem assim", comenta, entre risos. Nilton, conhecido como Marimba, fazia parte da equipe externa de reportagem, auxiliando os equipamentos para os repórteres. Uma vez, tiveram que ficar uma semana na cidade de Rio Grande e foi nesse cenário que se conheceram mais. "Brilharam os olhares. Ele me convidou para sair e tudo aconteceu", relembra. 

Valor à cultura

A competência pode encantar não somente no Jornalismo, mas também em outras telas, um trabalho paralelo, que aconteceu por acaso. É que Clarissa, há 15 anos, brilha em diversos comerciais de televisão, bem como campanhas publicitárias nacionais e internacionais. A beleza negra e a força da raça carregam consigo o charme de uma pessoa que faz valer a sua representatividade. "Diante de todo o contexto de vida, considero-me, sim, uma pessoa realizada", afirma. Hoje, tem na bagagem mais de 20 inserções e se sente honrada em ser, além de negra, uma mulher de 46 anos convidada para esse tipo de trabalho.

Quando o assunto é maternidade, surge um nome: Ópera, a gata que está com Clarissa há 12 anos e é considerada sua filha única. Junto com Nilton - que tem um filho de outro relacionamento -, não pretendem gerar outros. Fruto de um amor por animais vindo ainda da infância, a felina é mimada como se fosse uma herdeira e recebe todos os carinhos dos "pais". "Quando jovem, tive muitos gatos, porém, com a falta de estrutura, não tinha como cuidar bem e eles acabavam durando poucos anos", relembra.  

A relação com as religiões é tratada com muito respeito, no entanto, prefere não praticá-las. "Não me sinto confortável ao ver a forma como o homem trata as religiões", comenta. No entanto, acredita ter uma certa fé e admira aquelas de matrizes africanas, por ter forte relação com resistência e política. "Essas foram demonizadas por muitos anos, então, respeito a fé nas entidades e a luta de raça".

Com espírito de fazer muito mais, Clarissa não gosta de projeções, mas acredita que permanecerá realizando o que mais gosta: "Trabalhando e praticando atividade física". Existem, sim, algumas vontades para o futuro, aliado a uma vida tranquila, e outras tantas que não se pode prever. Está nos planos comprar um apartamento maior, por exemplo, e voltar a estudar para se qualificar em Artes Visuais, outro hobby. Além, é claro, de algo que não surpreende quem a conhece: "Viajar e conhecer novas culturas", finaliza.

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