Eliana Rigol: Eu andorinha

De advogada de agência de publicidade multinacional à escritora e inspiradora digital, gaúcha faz do seu modo de viver uma causa

* Por Cleidi Pereira, correspondente de Coletiva.net em Lisboa, Portugal. A jornalista assina conteúdos para Perfil de profissionais gaúchos da Comunicação que estão espalhados pelo mundo.

O fenômeno de migração das aves ainda não é bem compreendido pela ciência. Em busca de alimento e temperaturas mais altas, algumas espécies preferem voar à noite, tendo as constelações como bússola. Outras, devido à memória da espécie, orientam-se a partir de acidentes geográficos, como rios e montanhas. É o caso da andorinha-azul, que, todos os anos, com a chegada do Outono, empreende a longa jornada que começa em países do Hemisfério Norte (como Canadá) em direção aos do Sul (como o Brasil). Eliana Luzardo Rigol fez o caminho inverso. O ano era 2010 e aquela travessia mudaria a jornada da então advogada, com passagem pela agência Thompson, que se tornaria escritora, fotógrafa e inspiradora digital - um termo que, na era dos influencers, é o mais adequado quando se trata da gaúcha e colorada expatriada. "A melhor coisa que você pode fazer por uma pessoa é inspirá-la", justifica-se, lançando mão de uma célebre frase de Bob Dylan.

Nascida em Alegrete no dia de Finados de 1980, mas registrada um dia depois devido ao receio de mau agouro, ela é escorpiana com ascendente em movimento. Aos 17 anos, trocou o pampa pela capital gaúcha e, desde então, os ventos da mudança sopram com certa frequência na vida de sua "família-barco". Casada com o publicitário Lins Ricon, Eliana - que já morou em cinco cidades de três países - é mãe de Luna, 7 anos, e Apollo, 3, ambos nascidos no Canadá. Migração e maternidade, aliás, estão entre os temas dos seus dois livros de crônicas: 'Afeto Revolution', lançado neste ano pela editora Zouk, e 'Moscas no Labirinto' (Pergamus), que foi finalista, em 2016, do Prêmio AGES. E também de suas postagens no Instagram (@maternitylivre), onde contabiliza mais de 40 mil seguidores. Mas, no caso desta guria faceira e inquieta, não se deixe enganar por rótulos: indefinível é o que costuma dizer de si mesma desde que se libertou dos crachás e clichês.

Para Eliana, ler e escrever é como respirar. Foi justamente esta necessidade vital que levou uma pessoa analógica, completamente avessa às redes sociais, a criar um blog e, depois, o perfil no Instagram. Se hoje a produção de conteúdo (stories e posts) ocorre de forma intuitiva, a uma velocidade tão rápida quanto a de sua fala, o consumo, por outro lado, é mínimo. Perceber o impacto positivo de seus textos, da sua inspiração na vida das pessoas é o que a mantém, por ora, nas redes. A jovem, que se formou advogada com o sonho de trabalhar em prol de crianças e mulheres, fez e faz do seu modo de viver não só uma causa, mas também o seu ganha-pão. Em um mundo cada vez mais carente de autenticidade, talvez esta seja a sua receita de sucesso, o que, nos termos de Eliana, está mais para a liberdade de viver uma vida feita à mão do que qualquer outra coisa envolvendo cifras, ranking ou números.   

Das utopias

O horizonte a perder de vista do pampa gaúcho ensinou a menina que gostava de subir no telhado da casa da bisavó Judith e dormir ao relento para observar as estrelas que o mundo era uma porteira aberta. Ou que assim deveria ser. A mãe dela, a professora Gladys, costumava brincar dizendo que ela parecia uma presidiária, devido ao hábito de assinalar a passagem dos dias com um x no calendário. Eliana sempre soube que aquele não era o seu lugar. Foi Alegrete que lhe deu a sensação de infinito, de amplitude, de 'eu posso tudo'. "Mas era longe demais. De tudo. Nasci em um lugar onde toda a vez que volto, parece que a terra arrasta um pouquinho para mais longe. O dia em que saí de lá sabia que não iria mais voltar, mas, ao mesmo tempo, (o lugar) me deu um lastro de identidade, que foi a coisa mais bonita que eu tive", conta.

Conterrânea de Mario Quintana - cujos poemas estiveram presentes em momentos cruciais de sua vida -, foi na mais gaúcha das cidades que ensaiou os primeiros passos como escritora. Aos 12 anos, venceu um concurso de redação, que envolveu as escolas públicas e privadas do município. O tema era: 'O Alegrete que nós queremos nós podemos'. Deste momento, um dos raros em termos de reconhecimento na infância, ficaram somente as lembranças do dia em que recebeu uma medalha das mãos do prefeito, na praça da cidade. Em uma época em que fotografias eram escassas, tampouco algum dos seus familiares lembrou de guardar o texto. Filha do meio, costuma dizer que foi salva pelo amor de seus avós.

Tão logo foi alfabetizada, Eliana tornou-se uma leitora voraz. Uma de suas principais influências foi a professora Baldomira, amiga de sua mãe, que viajava para a Europa - o que, para ela, era como se fosse um outro mundo - e a presenteava com livros, como 'O Diário de Anne Frank'. Questionadora nata, também cresceu vendo a mãe ler diariamente o Correio do Povo, cujas páginas deram uma contribuição para sua alfabetização política, após uma provocação de Gladys ao ser questionada pela filha sobre o esquema dos Anões do Orçamento.

A advogada da turma

A formação prática, no entanto, havia começado bem mais cedo. Por volta dos 6 anos, começou a acompanhar a mãe nas manifestações do Cpers Sindicato (entidade que representa os professores estaduais), em Porto Alegre. Foi o olhar atento do pai, Dario, também professor, que identificou a mordida cruzada em uma fotografia, diagnóstico que levaria a idas frequentes à capital para tratamento odontológico. E, claro, aos protestos dos professores que exigiam melhores salários e condições de trabalho. Mais tarde, esta expertise a impediria de ficar calada diante do que considerasse uma injustiça, como quando uma tríade de freiras do colégio em que estudava tentou obrigá-la a fazer catequese.

O gosto por contestar e a capacidade argumentativa fizeram com que ficasse conhecida, em casa e na escola, como a "advogada da turma". Não por acaso Direito foi o curso que acabou escolhendo, depois de ter cogitado História ou Jornalismo. Aos 17 anos, mudou-se para a capital gaúcha para fazer faculdade na PUC, onde passou em quarto lugar e conseguiu uma bolsa. "Porto Alegre me dava a sensação de estar viva: ia para a Bienal, Feira do Livro, via o pôr do sol no Guaíba. Foi onde aprendi sobre cidadania", recorda ela, que, na época, dividia um apartamento na Cidade Baixa com a irmã mais velha, Juliana - Marcos é o irmão mais novo.

Para uma jovem identificada com a esquerda, que lia Eduardo Galeano, engajada e consciente das mazelas sociais, estudar em uma universidade privada, a qual costumava ser o destino de filhos da elite gaúcha, não era algo que estivesse nos planos. A sensação de estranheza - já bem conhecida por sua alma vieja, como costuma dizer - persistia. Enquanto os semestres transcorriam, fez estágios em órgãos como o Tribunal Regional Federal (TRF), Procuradoria-Geral do Estado (PGE) e Assembleia Legislativa. Em 2005, pegou o canudo e começou a estudar para concurso. No ano seguinte, quando trabalhava em um escritório, conta ter cumprido a função social do diploma ao ingressar com várias ações em nome de professores amigos de sua mãe. 

Da condição humana

Quando embarcou para São Paulo para fazer companhia à sua melhor amiga, que estaria de aniversário, Eliana não sabia que aquele seria o primeiro passo para uma série de reviravoltas, de eventos redefinidores de rota. Destino, desígnio divino... Para ela, nada é por acaso. Primeiro, foi a ligação de um amigo que era diretor de arte da Thompson, pedindo para que ela fosse na agência, pois estavam contratando um advogado. A profissional, que nunca tinha ouvido falar na multinacional, disse ao amigo que sequer tinha roupas de advogada, no que ele respondeu: "Eliana, isso aqui é uma agência de publicidade. As pessoas aqui trabalham de All Star." Intrigada, ela, então, resolveu ir de rasteirinha e com o cabelo preso com um lápis. Saiu da entrevista contratada, mesmo admitindo ao futuro chefe, na vã tentativa de demovê-lo da ideia, que o seu inglês era praticamente inexistente.

Com boa memória e capacidade de fazer conexões que impressionavam, trabalhou na agência por cerca de dois anos. Era conhecida como a 'gaúcha faca na bota', proativa e eficiente. No entanto, com o tempo, as mesmas características levaram a conflitos com o chefe, e ela pediu demissão. Ele, porém, recusou e ela foi transferida para a DCS, em Porto Alegre, mas regressaria à agência de origem em 2008. "São Paulo foi um respiro, foi quando eu pude ver quem eu era porque tinha grana pra comprar", afirma. Na capital paulista, "uma empresa e não cidade", fez curso de roteiro de cinema, passava as tardes dos finais de semana em exposições e livrarias. "Estava no ápice, na ilusão do sucesso", diz.

Uma impressora que não funcionava, um contrato para ser assinado e um grampeador. Foram as peças de um efeito dominó responsável por revelar que, sim, existe amor em SP. Um mês após seu retorno à Thompson, Eliana precisava imprimir um contrato para um fotógrafo, mas, como a máquina de sua sala havia estragado, enviou o documento para a criação. Lá, saiu à procura de um grampeador. Um dos criativos, Lins Ricon, tinha e, enquanto ela grampeava as folhas, observou que na mesa dele havia revistas como a 'Piauí' e 'Caros Amigos', o que, para ela, era um indício de vida inteligente. Conversaram brevemente sobre mídia.

No dia seguinte, Lins a presenteou com a biografia do jornalista Samuel Wainer. Foram inúmeras conversas pelo extinto MSN e alguns encontros até o primeiro beijo no cinema. Uma década depois, o livro e o grampeador estão entre os raros itens que permanecem quando a família-barco resolve içar âncora e levantar as velas, vendendo tudo e liberando espaço para os recomeços. O primeiro deles, como casal, aconteceu em 2010, quando Lins foi contratado para trabalhar em uma agência em Toronto, a Proximity. Ela, que na época era advogada na extinta Mix TV, conta que decidiram morar no exterior "por paixão". Em meio ao boom econômico que o Brasil vivia, amigos e família não compreendiam a decisão de migrar. Afinal, o casal levava uma vida muito confortável na metrópole global. Mas essa não seria a primeira nem a última resolução incompreendida?

Da experiência

Foi em Toronto que Eliana aprendeu, entre tantas outras coisas, que "migrar amansa o ego" - frase de uma de suas crônicas do primeiro livro, o "amarelinho" 'Moscas no Labirinto'. "Comecei a tentar entender quem eu era nessa vida de migrada. Me apavorava essa coisa de pensar quem eu vou ser daqui a cinco anos." Aos poucos, foi se reinventando. Fez voluntariado na Unicef, cursos na Universidade de Toronto, vendia suas fotografias em cafés, escrevia para sites e também em seu blog, que mantinha desde 2008. Não com o objetivo de ser lida, mas para "limpar a chaminé". "Escrever é uma necessidade de alma", revela.

A cultura protestante e os estudos sobre empreendedorismo e economia mudaram sua relação com as cifras. Afirma ter aprendido que dinheiro "se faz", e não que "se ganha". E foi assim que surgiram iniciativas como o curso online de parto natural e a Jornada da Heroína, um trabalho de mentoria voltado para mulheres. Enquanto inventa seus trabalhos, cria os filhos junto com o marido com presença e liberdade, priorizando aquilo que é mais que um tempo: um lugar para o qual sempre se volta, a infância.

Se os processos relacionados ao gestar e parir foram transformadores, os puerpérios foram revolucionários. Quando Luna tinha um mês, viajaram para Barcelona, e o sonho de morar e rodar pela Europa - semente quando ela ainda era criança, a partir dos relatos da tia Baldô - ganhou forças. Mais tarde, a demissão de Lins seria o incentivo para o casal viver um período sabático, com Luna bebê a tiracolo, pelo Velho Continente. Durante três meses, percorreram 12 países, reencontrando amigos e colecionando memórias. A temporada terminou com uma viagem ao Brasil, onde, finalmente, teriam tempo para seus afetos. Depois de cinco meses sem teto, retornaram ao Canadá.

Com Apollo não foi diferente. Assim que ele nasceu, sentiu o chamado para levá-lo para perto do mar. Eliana não queria atravessar outro puerpério em meio ao rigoroso inverno canadense. Foi quando Lisboa surgiu como uma possibilidade. O caçula tinha cinco meses no momento em que ancoraram na cidade que, como diz a canção de Amália Rodrigues, "tem cheiro de flores e de mar". Depois de um puerpério sabático em Portugal, com Lins desempenhando a função de cuidador principal de Apollo, a família está de malas prontas para voltar ao Canadá. Na bagagem, sonhos realizados, como a viagem de carro até a Itália, feita em família, logo após a reabertura das fronteiras na Europa, que haviam sido fechadas devido à pandemia do Coronavírus.

Assim como no caso das andorinhas-azuis, as terras frias da América do Norte também são território (re)produtivo desta gaúcha, que é sinônimo de gargalhada, mergulho, porta aberta e texto que flui. Em Toronto, pretende agora experimentar uma espécie de hibernação criativa e trabalhar nos próximos livros, sendo um deles sobre a história das mulheres, costurada com relatos das experiências e lugares que visitou durante a temporada na Europa. Ou não? "Tem uma frase do escritor Kurt Vonnegut que rege a minha vida: nós temos que continuamente nos atirar em precipícios e desenvolver nossas asas na queda. E eu seguido falo para o Lins: vem!"

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