Iotti: Correndo atrás de algo mais

Cartunista e jornalista de Caxias do Sul espalhou, através do Radicci, a cultura da colônia pelo Estado inteiro

Carlos Henrique Iotti - Divulgação

"Eu sou uma fraude", diz Iotti. Logo, complementa, aos risos: "As pessoas acham que sou colono, mas não sou nada". Conhecido no Sul pela criação do Radicci, um habitante raiz da colônia, o cartunista de Caxias do Sul, na verdade, é do centro da cidade serrana. Nasceu e cresceu em um ambiente urbano, bem diferente daquele retratado em suas famosas tirinhas.

Mesmo assim, ele garante que algumas características de seu personagem são baseadas nas suas "e de mais um monte de gente que conhece". Inclusive, conhecendo mais de Radicci, é possível descobrir um detalhe interessante sobre o seu autor: o personagem foi criado em 1983, para as páginas de O Pioneiro, quando Iotti tinha apenas 19 anos. Ou seja, o talento para o traço - e para contar histórias - acompanha o artista desde sempre.

E ser precoce faz parte da trajetória do chargista. Aos 17 anos, Carlos Henrique Iotti deixou sua terra e seus pais e rumou para Porto Alegre. Havia passado no vestibular para o curso de Jornalismo na Fabico, da Ufrgs. Afinal, o bom humor e a inteligência andam de mãos dadas. Com a criatividade na mala, chegou na Capital não para buscar a cultura da cidade grande, mas para fazer o inverso: trazer os descendentes de italianos para conquistar o pessoal que troca o 'e' pelo 'i' no final das frases.

Quando tinha apenas 20 anos, lançou a primeira obra na Feira do Livro de Porto Alegre. Nervoso para a sessão de autógrafos, pensou que não iria ter público, até que foi surpreendido ao ver quem era a primeira pessoa a pedir o seu autógrafo: ninguém menos que Luis Fernando Verissimo. "Tremi a mão, nem sei se escrevi o nome dele certo. O primeiro autógrafo que dei na vida foi para o Luis Fernando Verissimo. Nunca vou esquecer disso", conta.

"E nunca mais parei"

No começo dos anos 1980, quando se mudou para Porto Alegre para estudar, ficou no apartamento de uma tia. Como bom interiorano, dormia no sofá, guardando a mala debaixo do mesmo. Depois de um tempo, foi morar com colegas em uma república "agitada", na Osvaldo Aranha. "Tenho recordações bem loucas dessa época. Algumas, não lembro bem", conta, aos risos.

Na Fabico, virou o chargista do curso. Botava os desenhos na parede do bar, desenhava os colegas, fazia os trabalhos em quadrinhos e "enchia o saco dos professores de desenho, da Publicidade". Na época da faculdade, criou o primeiro personagem: Ernesto Tchê da Silva, um guerrilheiro brasileiro. "Uma bobagem completa, não tinha pé nem cabeça. Ele passava por uma obra do Dmae e dizia: 'O povo já está em trincheiras'. Esse aí não deu certo. Mostrava para os colegas e eles só balançavam a cabeça", admite.

Ainda nessa fase inicial da carreira, relembra de uma situação inusitada. No começo dos anos 1980, o seu sonho era conhecer o histórico Coojornal, que ainda estava em pleno funcionamento. No periódico, trabalhavam todos os cartunistas que Iotti idolatrava. Assim, pouco tempo depois de chegar em Porto Alegre, decidiu ir visitar a cooperativa de jornalistas, que ficava na Comendador Coruja. No dia, no entanto, chegando ao endereço, encontrou todos os funcionários sendo despejados do prédio. "Tinha falido. Que timing, né?", conta, revelando que cogita criar uma iniciativa semelhante, mas com quadrinistas.

Nesta mesma época, Iotti recebeu um "elogio demolidor", ainda no início de sua carreira. Ao ir visitar, pela terceira vez, Santiago, ouviu: "Tchê, vou te fazer um elogio: tu não desiste, né?". Essa frase, mesmo depois de tantos anos, ainda marca o artista, que a absorveu e, hoje, tem como lema a frase "desistir é para os fracos".

O Radicci nasceu em 1983. Ou seja, tem 37 anos. Já era para ter sido aposentado, conforme o criador, mas agora, com essas novas regras, não sabe quando ele vai conseguir, brinca. O personagem foi desenvolvido quando Iotti começou a trabalhar no Pioneiro, de Caxias do Sul, depois de muito insistir. Conseguiu finalmente a vaga quando trocaram o editor do jornal e assumiu Paulo Cansian: "Ele, que me deu a primeira oportunidade, disse: 'Cria um personagem. Sei lá, faz um italiano, faz um gringo aí'. Daí, fui para casa e fiz".

Na época, a criação foi um colono que comia um radicci e se transformava no Capitão Radicci, mas a ideia durou uma semana apenas, pois não tinha paciência para fazer super-herói. Logo, passou a ser apenas o Radicci. No dia em que foi desenhado, já ganhou a companhia de Genoveva, do Nono e do filho Guilhermino, que, na verdade, era o seu alter-ego. "E nunca mais parei de fazê-los", diz.

Um inquieto de Caxias

Filho da dona Zoé Maria Horn Iotti, professora e doceira, e do seu Silvestre Iotti, representante comercial, o cartunista, nascido em 27 de fevereiro de 1964, tem três irmãos: Eduardo, diretor de hospital; León, médico e professor; e Luísa, professora aposentada. O sobrenome, que muitos acham que é apelido, na verdade, vem da região de Reggio Emilia, na Itália. "Provavelmente, a origem deve ser uma abreviatura de outro sobrenome", explica.

Da infância, relembra com carinho - e com uma contagiante travessura no olhar: "Éramos crianças e vivíamos na rua, de noite, caminhando pelos tetos das casas, invadindo os pátios. Éramos uma gurizada louca". Além de fazer arte na rua, Iotti também gostava de ficar em casa. Estudava de manhã e, durante a tarde, lia sobre aviação no período de guerra, uma paixão, e assistia TV - com preferência pelos desenhos da Hanna-Barbera. Recorda também que comia os restos de leite condensado das latas, após a sua mãe fazer os doces que complementavam a renda de professora. "Foi uma infância muito doce, vendo televisão e lendo livros sobre Segunda Guerra Mundial. Nunca fui uma criança muito normal", brinca.

Como toda criança, sempre gostou de desenhar, mas foi na transição para a adolescência que ocorreu o ponto de partida para o seu lado cartunista pintar na área. Quando os irmãos, que são um pouco mais velhos, apareceram em casa com os livros 'Qi 14' e 'Tubarão Parte II', percebeu: "Pô, esses caras são gaúchos e estão fazendo charges. Quero ser isso aí". Os desenhos eram de nomes como Edgar Vasques, Santiago e Canini.

Assim, por volta dos 14 anos, Iotti começou a tentar ser chargista. Ele encontrou um único empecilho: achar algum lugar que publicasse suas obras. Em Caxias do Sul, tinham quatro jornais no final dos anos 1970. E o jovem foi a todos, pedindo para que dessem espaço para os seus desenhos. "Todos disseram: 'Não, te some daqui'", relembra, rindo de sua insistência da época. E foi assim até que Jaca, que diagramava a Folha da Tarde, cometeu, segundo Iotti, um ato impensado: publicou uma página inteira só com as suas artes, em um espaço para novos talentos. "Aí, se foi o boi com a corda", diverte-se.

Pros lados de lá

Iotti casou duas vezes. Da primeira união, nasceram os dois filhos, Rafael e Camila. Ele, de 27 anos, é escritor, conta com dois livros de poesia publicados e, agora, está atuando em jornal. Ela, de 22, é psicóloga. "Os dois já estão galgando um caminho bem legal", orgulha-se. O seu segundo matrimônio aconteceu em 2014, com Anna Tscherdantzew.

Designer de moda, ghostwriter e, agora, produtora, câmera e editora da Radicci Entretenimento - iniciativa para produção de vídeos -, Anna, de acordo com o cartunista, ajuda-o "até a respirar". Eles se conheceram na época da faculdade, mas cada um tomou um rumo diferente na vida. Foram se reencontrar apenas em 2012, nos Estados Unidos. "Eu estava em Seattle e ela em Los Angeles. Uma amiga em comum nos colocou em contato e eu disse: 'Tá, vou para Los Angeles fazer uma visita'. E aconteceu", conta.

Como Anna é cidadã americana, Iotti decidiu ficar por um tempo nos Estados Unidos - intercalando com a sua vida em Caxias do Sul. Nas terras internacionais, surgiu a oportunidade de gravar um programa de pesca, a outra paixão de Iotti. O 'On the Rod' foi exibido na Fish TV e, mesmo após encerrar o seu ciclo na emissora, segue ganhando novos episódios, agora, para o YouTube.

Iotti acredita na máxima de que fazer o que ama não é trabalhoso. "Pra mim, todos os dias são de folga, porque eu considero o meu trabalho um prazer", afirma. Ele gasta cerca de sete horas diárias desenhando, sempre acompanhando os assuntos do momento - a política nacional é um prato cheio, conforme destaca. Até pouco tempo, era funcionário do Grupo RBS. Agora, faz tiras diárias do Radicci para O Bairrista e para o jornal paranaense Diário do Paraná.

Reconhecido por seu talento como chargista, Iotti explica, sempre com bom humor, que até gostaria de fazer outras atividades, como lidar com madeira ou ser mecânico, mas admite que não tem muita capacidade para tal. No entanto, confessa que pode investir em outras áreas futuramente: "Com esse negócio de ter uma produtora, quem sabe eu faça alguma coisa ligada à pesca. Mas, enquanto a charge me tomar muito tempo, ainda não posso pensar nesse plano B".

No país norte-americano, o artista ainda pretende deixar sua marca, ou melhor, o seu traço: "Tenho uma ideia na cabeça: não vou sair desse plano sem publicar alguma coisa nos Estados Unidos, nem que seja em um jornal de bairro". E o cartunista está trabalhando para isso, criando personagens - já fez três para o público gringo, em inglês, mas ainda não encontrou o resultado esperado. "Acho que não acertei a mão ainda, mas é uma ideia. Sou cabeça dura".

O Carlos Henrique

Além de ser fã de pescaria, tema do seu xodó 'On the Rod', o chargista ainda nutre outra paixão que poucos sabem: a corrida. O torcedor do S.E.R. Caxias do Sul, quando mais novo, gostava também de vôlei e de basquete, mas decidiu começar a disputar maratonas por um motivo simples: "sou quase um anão", brinca. E foram mais de 50 provas em que correu: "E tu vê: eu sou gordinho, baixinho, bebo? Sou a prova de que qualquer um pode ser maratonista".

Admirador da história da Segunda Guerra Mundial, é apaixonado pela aviação daquela época. "Quando eu era criança, gostava de montar aqueles aviões, montava muito mal aquilo". Em Seattle, gosta de estar sempre no museu da Boeing: "Já fui umas quatro vezes e sempre fico bem louco". 

De gostos simples, diz que tem várias comidas favoritas, mas afirma que o churrasco se sobrepõe, pois a especiaria não é só uma comida, é um evento, vai além da comida. Já no que diz respeito à religião, ressalta que não crê em nada, mas não se diz totalmente ateu, pois não fecha a porta. "Vai que um dia ele aparece, né?"

Da área cultural, revela que um dos livros preferidos é 'Coração das Trevas', de Joseph Conrad, o qual leu duas vezes. Ainda ressalta que gosta do trabalho literário de Tabajara Ruas, que foi seu colega no Diário do Sul. Na música, é eclético, mas não gosta dos pagodes modernos, "de mauricinho", e os sertanejos universitários. O resto? Tudo serve. No cinema, admira o trabalho de Francis Ford Copolla e Ridley Scott.

Considera-se caseiro, quando não está viajando, já que atualmente tem uma vida com bastante milhas aéreas, pulando de Caxias do Sul para Seattle, com Anna, sua esposa. O plano é que, em breve, se fixe de vez em sua terra natal - com períodos em Florianópolis, onde a companheira também tem residência. E, com horas dedicadas aos cartuns diariamente, pretende, daqui a 10 anos, desenhar menos e se dedicar a outras áreas, como pesca e viagens. Descontraído e objetivo, deixa claro que há muito ainda pela frente: "Hoje, posso dizer que me sinto realizado, mas estou sempre atrás de mais alguma coisa".

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