O inimigo somos nós: a IA só sabe o que ensinamos à ela

Comissão de Comunicação do Senado Federal debate regulamentação da inteligência artificial, principal tendência apontada por especialistas para 2024

O conceito de inteligência artificial (IA) não é novidade. Aliás, o primeiro registro de tal inovação nos leva à década de 1950. No entanto, a tecnologia não cansa de surpreender e nos traz ao hype do momento: IA generativa, que utiliza sistemas computacionais para criação de conteúdos como textos, imagens e áudios. ChatGPT, da OpenAI, Grok, da X de Elon Musk e, a mais recente novidade, o Gemini, do Google, são os principais nomes quando falamos neste modelo de software. 

Uma pesquisa da JournalismIA, iniciativa da London School of Economics and Political Science, realizada em 2023 em 46 países, incluindo o Brasil, aponta que 75% das redações jornalísticas já incorporaram ferramentas de inteligência artificial em seus processos. Os quatro especialistas ouvidos pela reportagem - o coordenador da Escola Politécnica da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS) e responsável pelo curso de bacharelado em TI - Ciência de Dados e Inteligência Artificial, Daniel Callegari; o gerente de Jornalismo Digital do Grupo RBS, Rodrigo Müzell; o CEO da ON2, desenvolvedora de produtos tecnológicos, Jaydson Gomes; e a líder técnica e curadora de chatbots na Ubots, Marina Engrasia - convergem em um tópico quando se trata de futuro: regulamentação.

Desde maio de 2023, tramita o Projeto de Lei (PL) 2338/2023, de autoria do senador Rodrigo Pacheco (PSD/MG), presidente do Senado Federal e do Congresso Nacional, sobre o uso de IA e seus limites. Em novembro, a Comissão de Comunicação do Senado esteve reunida para discutir a pauta, assim como a organização Repórteres Sem Fronteiras que, no mesmo mês, publicou a 'Carta de Paris', documento que orienta a mídia e os profissionais na relação entre jornalismo e inteligência artificial. 

"Pensamento crítico é fundamental", enfatiza Callegari, que segue: "A IA traz muitos benefícios, mas é necessário atenção ao uso ético e transparente das tecnologias, garantindo a qualidade dos dados de treinamento dos modelos e no cuidado com a interpretação dos resultados fornecidos por esses sistemas". Pode-se dizer, conforme propõe Gomes, que inteligência artificial na verdade não existe. É apenas artificial. Uma vez que ela entrega apenas na medida em que recebe dados.

Tais informações, no entanto, são muitas vezes propriedades intelectuais originais de autores nomeados. Sem mencionar a fonte, o ChatGPT, por exemplo, estaria 'roubando' um material exclusivo e oferecendo sem critério para aplicação não monitorada. No Rio Grande do Sul, o portal de notícias GaúchaZH, iniciou, em 2023, testes de utilização de IA generativa na produção de textos. As matérias diárias de previsão do tempo estão sendo produzidas a partir de um software elaborado especialmente para entregar a partir de uma base de dados orientada pelo próprio Grupo RBS. 

"São mais de 50 pessoas envolvidas no projeto, que está em constante avaliação e aprimoramento. Entre tentativas e ajustes, muito aprendizado, conseguimos otimizar tempo de produção e, ao invés de entregar uma, duas matérias com as condições climáticas, priorizando poucas cidades, evoluímos para 65 conteúdos diários abrangendo uma parcela maior de regiões", conta Müzell, que está à frente da iniciativa. 

Ao final de cada texto, existe o aviso '*Este conteúdo foi produzido por inteligência artificial com base nos dados divulgados pela Climatempo, serviço de informações meteorológicas contratado pelo Grupo RBS'. A transparência para o público é um dos pilares não somente da empresa gaúcha, mas da Associação Nacional de Jornais (ANJ) que, em setembro de 2023, assinou junto a outras entidades midiáticas, o documento 'Os Princípios Globais para Inteligência Artificial', o qual  instrui diretrizes para que o mercado não abra mão da inovação, mas faça um uso ético e responsável da IA. 

Não se preocupe, os robôs não vão dominar o planeta

O impacto é inegável. Fortemente embasadas em estudos acadêmicos, treinadas de sol a sol, as máquinas têm se mostrado capazes de substituir algumas tarefas, até então, realizadas pelos humanos. Capacidade infinita de armazenamento de dados, processamento ágil de informações, velocidade na resolução de equações matemáticas, automatização de ações repetitivas, são algumas das vantagens da integração de IA a demandas de trabalho para jornalistas, publicitários, marketeiros, relações-públicas e designers. 

Contudo, é preciso lembrar que, fora dos roteiros de Cinema e da Literatura, nenhum robô é capaz de sentir. Marina, que também é bacharela em Letras e especialista em Linguagem, Design Conversacional e Experiência do Usuário por meio de  de IA, reflete a partir da expressão 'garbage in, garbage out', que no português foi traduzida como algo 'qualidade de entrada determina qualidade de saída', que a criatividade, a análise crítica e a estratégia seguirão como principais diferenciais na relação pessoas versus máquinas.

"Não estamos nem perto de ver os robôs substituírem os seres humanos. A inteligência artificial existe para auxiliar e, quem entendê-la nos detalhes, sem simplesmente usar como se fosse algo milagroso, têm mais chances de sucesso", ressalta ela. 

Passado o boom midiático em cima do surgimento e revoluções propostas por plataformas como ChatGPT e Gemini, a tendência é inclusive, segundo Gomes, um esfriamento do marketing massivo a respeito da temática. "São algoritmos desenvolvidos por profissionais inteligentes. Sistemas abastecidos por dados gerados por pessoas. Treinados por mãos humanas. Ou seja, com o tempo, a sociedade deve começar a perceber que é um gerador automático que recorre a estatística para entregar um texto", provoca, completando: "Não é um deus, uma caixa mágica. A inteligência é humana. A IA é capaz, no máximo, de simular".

Hiperpersonalização e Processamento de Linguagem Natural

Você inicia uma conversa via WhatsApp com uma empresa. Não existe registro de uma interação anterior. A resposta surge em algo como: 'Olá, fulano, que prazer receber seu contato. Como podemos lhe ajudar?'. Você se questiona 'como eles sabem meu nome?'. Inteligência artificial. O foco na experiência do usuário e a preocupação em entregar retornos personalizados estão entre as indispensáveis qualidades de uma marca. 

O Processamento de Linguagem Natural (PLN) é um campo da tecnologia que se dedica a criar máquinas com aptidão de entender dados de texto ou voz e responder da mesma forma como os humanos conversam entre si. A exigência de rapidez e assertividade no conteúdo entregue ao consumidor só vai aumentar e, neste cenário, a IA se apresenta como aliada para os negócios. 

Para 2024, o núcleo de Jornalismo Digital do Grupo RBS está mapeando uma série de projetos que incluem IA, entre eles a oportunização aos jornalistas de destinarem mais energia nos valores notícia do que em atividades corriqueiras, mas essenciais, como a leitura dinâmica de extensos documentos para extração de informações para uma matéria ou o filtro das sugestões de pauta enviadas pelos leitores que pode ser feito por um chatbot que interage com os usuários e direciona suas mensagens já de modo esclarecido e para a editoria certa. 

"É importante que a máquina seja compreensível, clara e sem ambiguidade em  suas comunicações, mas o ponto chave está em assimilar a IA como intermediador para entregas mais qualitativas e quantitativas", pondera Müzell, que adianta:  outros conteúdos de GZH, como o horóscopo, também terão participação de inteligência artificial em seu processo de produção e publicação. 

Integração e multidisciplinaridade

O Report Panorama Emerging Tech 2023 revela que a IA é a tecnologia emergente mais utilizada por startups brasileiras, sendo a elementar para 111 das 504 empresas entrevistadas. No Rio Grande do Sul, desponta entre as 10 principais áreas de atuação das startups. Profissionais integrados e conectados com com as mudanças não somente diminuem o risco de serem trocados por máquinas como também expandem suas perspectivas de crescimento em seus ramos de atuação. 

O curso de TI - Ciência de Dados e Inteligência Artificial da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS) apresenta-se como pioneiro no meio acadêmico e o único presencial no Sul do País específico em IA. "Além de disciplinas sobre fundamentos matemáticos, estatísticos e computacionais, nosso currículo inovador acrescenta conhecimentos de humanas, LGPD e Comunicação", enaltece Callegari. Um fato que chama atenção, ainda, é que a multidisciplinaridade da proposta e as amostras práticas de sua utilidade tem atraído, de acordo com o coordenador, pessoas de outras áreas, como médicos, advogados e economistas, para estudar computação e IA.

Destrinchar as estruturas textuais, tom de voz, ordem das palavras, intenção do discurso é justamente o que vivencia Marina em seu dia a dia na Ubots. "Há muita ciência na linguística", assegura a bacharela em Letras. E é na construção de soluções para canais de atendimento que ela reitera o que há no horizonte: Comunicação e IA não se desvinculam mais.

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