Qual é o futuro do futuro?
Futurismo é a ciência que estuda as tendências para os próximos tempos, e a profissão de futurista emerge como uma importância, inclusive, para o futuro

Antes de mais nada, é fundamental definir: bola de cristal somente para videntes. O futuro não é linear e pode ter múltiplas consequências e caminhos. É o que apontam especialistas em antecipar tendências e em investigar como ocorrerão os próximos tempos, os futuristas. Essa ciência, a qual se ocupa de fazer essas previsões e antever cenários, de maneira que decisões a respeito de diferentes temas possam ser melhor tomadas, ainda é relativamente desconhecida do grande público. Porém, tem ganhado adeptos e influenciadores digitais, que têm difundido conhecimentos na área.
Amy Webb, pesquisadora norte-americana, afirmou, durante seu painel no South by Southwest (SXSW) 2024, que a humanidade está em um processo de transição, posicionando-se na formação de uma "Geração T", ou geração "de Transição". Outros estudiosos também asseguram que o pensamento sobre como será o futuro passa, necessariamente, pelo debate sobre as novas gerações, já inseridas em um contexto de transição tecnológica. Dois aspectos, entretanto, são certos: quem não entender como será o futuro ficará para trás, e a ética terá um papel central em como administrar o que vem por aí.
O que é o futurismo?
Passando longe de ferramentas de previsão semelhantes a oráculos, cartas ou tabuleiros de enigmas, o futurismo é um campo multidisciplinar que, com base em tendências, estuda e antevê possibilidades e panoramas. "O futurismo tem mais a ver com antecipação do que previsão, muito menos com adivinhação. Por isso, tenho evitado utilizar o termo 'futurologia'", diz Rosa Alegria, a primeira brasileira formada nessa disciplina. Ainda desconhecido da maior parte da população, esse campo de estudo se mostra promissor ao, por meio de técnicas, desenhar cenários que possam auxiliar em uma tomada de decisões mais rápida e eficaz. Ela declara em seu portal que a profissão ainda é mal compreendida e que, por isso, sofre alguns preconceitos, evidenciando a importância de se analisá-la como um campo profissional de atuação sem eventuais ideias místicas que poderiam acompanhar a interpretação. "Nada de determinismo. O futuro nunca foi singular nem destino. De que serviria estudar o futuro se ele fosse um só?", questiona.
Por meio da análise de episódios históricos, avanços tecnológicos, fatores geopolíticos e tendências, os futuristas desenham possibilidades para como os caminhos que percorrerão. Contudo, trata-se exatamente disso: possibilidades de cenários plausíveis, não de certezas. No contexto de rápida modificação das tecnologias, o futurismo desempenha um papel de destaque ao conseguir organizar esses possíveis trechos. "A gente está vivendo uma era de avanços exponenciais. Quando a gente coloca a nossa imaginação dentro de um sistema metodológico, a gente consegue se preparar para crises em potencial, superar desafios, e a gente, sobretudo, consegue lidar com incertezas que estão acontecendo", explica Sabina Deweik, futurista e sócia-diretora do Future Concept Lab Brasil.
Zaika dos Santos, outra estudiosa da área, diz que o futurismo também é importante por permitir que se imerja no futuro "sem negar o presente e o passado". Ela defende uma metodologia baseada na elaboração de múltiplos cenários com frameworks (estruturas pré-construídas que ajudam a criar softwares) sobre múltiplas possibilidades, entendendo que isso é necessário para catalisar futuros possíveis e reais para as novas gerações. A futurista, que também é multiartista, analisa a ciência como contribuinte para um processo de interligação entre os campos que podem compor o futuro de uma forma não única. "Não dá para resumi-lo, e sim, coexistir. É fundamental compreendê-lo como humano em sua diversidade, animais e a natureza", comenta.
O futurista também pode ser considerado um "consultor de inovação", como aponta o profissional Tiago Mattos em sua página na internet. Não há, ainda, uma graduação específica para esse título, mas existem cursos em nível de pós-graduação com ênfase na área, dialogando com pesquisas de tendências e com a descoberta de novas tecnologias. Tradicionalmente, futuristas são lideranças conferencistas, com participação ativa em eventos que versam sobre fatores tecnológicos e tendências, além de oferecerem consultoria especializada no ambiente da profissão. O que é unanimidade entre os profissionais é o caráter multidisciplinar: para trabalhar com futurismo, é necessário abarcar os conhecimentos de diferentes áreas, assim como compreender diversas tendências para, desse modo, realizar uma análise de conjuntura que torne o seu cenário plausível.
A transição é da artificial
O processo de transição para o futuro pelo qual a humanidade passa está intimamente ligado à Inteligência Artificial (IA). Zaika afirma que o momento atual de transição é o da Indústria 5.0, a qual utiliza, na sua base, essa ferramenta. Além disso, questões relacionadas à tecnologia verde, na perspectiva de alinhamento com a crescente pauta das mudanças climáticas e para a mitigação de riscos, trazem um tom ao debate que alia o uso de novos artifícios para o bem comum do planeta.
A pesquisadora, no entanto, sinaliza que há um dilema ético que circunda o uso de IA, sendo fundamental a sua investigação para uma boa condução dos processos transicionais. "Nós, humanos, temos nossas autonomias determinadas pelo pensamento crítico. É fundamental focarmos no pensamento crítico como eixo desta colaboração", preconiza ela, que complementa: a inteligência artificial deve exercer um papel de colaboradora com os seres humanos.
Sabina pondera que o uso de IA acelerará os processos e as produções, assim como proporcionará o desaparecimento de algumas profissões e o surgimento de outras - algumas, possivelmente, nem descobertas ainda, mas que serão tendência para o futuro. Na mesma linha de raciocínio, porém, frisa que a superoferta de tecnologias também evidencia possíveis problemas éticos em relação à IA, com a possibilidade de criação de conteúdos falsos e desinformação.
Para além do mundo virtual, por exemplo, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) promoveu medidas de regulamentação da inteligência artificial com vistas às eleições municipais de 2024. Em uma mudança na Resolução nº 23.610/2019, a qual versa sobre propaganda eleitoral, a instituição definiu a obrigatoriedade da indicação de quando um conteúdo publicitário fosse gerado por IA, bem como a proibição de deepfakes.

A pesquisadora destaca a importância de realçar o lado humano ao tratar com a tecnologia, pois essa não pode substituir as habilidades intrinsecamente humanas, como a capacidade de liderança e a criticidade. Entender como bem administrar as novas ferramentas e ciências de uma maneira ética, assim, também é um fator que integra o novo superciclo de tecnologia. "A gente vai precisar de uma ética aumentada e de uma consciência aumentada para entendermos como a gente usa toda essa tecnologia. Porque a gente pode fazer coisas maravilhosas, mas a gente pode fazer coisas terríveis também com a tecnologia", sinaliza.
Alfabetização de futuros
A ideia de "inovação" no novo superciclo tecnológico está relacionada à ideia de "impacto positivo". Por meio das potencialidades que as novas máquinas, redes, ferramentas e algoritmos trazem, trazem a possibilidade de utilizar esses conhecimentos para a resolução de questões ambientais, sociais e econômicas. E, com isso, surge a necessidade de haver uma "alfabetização de futuros", de maneira que se consiga reconhecer que o futuro não é feito apenas no presente, mas a partir dos imaginários e projeções que se formam para a construção das novas perspectivas. Afinal, o que se quer para o(s) futuro(s) em curto, médio e longo prazo?
Sabina diz que 2023 foi o ano do hype da inteligência artificial e que 2024 é o ano da aplicação. Os reflexos dessa aplicação merecem uma atenção diferenciada, pois, com ela, também ocorre a discussão a respeito da automação de processos, informações inverídicas e, com a transição no mercado de trabalho, necessidade de requalificação de postos profissionais. Isso possibilita a geração de um descompasso entre quem compreende as novas tecnologias e, em particular, a IA, e quem não consegue acompanhar esse ritmo. Situa-se, aí, a alfabetização de futuros como um artifício importante para a redução das desigualdades sociais em um momento de transição tecnológica e para a compreensão dos novos tempos.

O entendimento de "futuro", igualmente, não deve ser reducionista nem determinista. Em acelerados processos comunicacionais e de liberdades para utilizar as redes e as múltiplas ofertas de ferramentas, a alfabetização e letramento sobre como tratá-las será crucial para o diálogo com as novas gerações quanto à descentralização dos dados e ao processo educacional em relação à tecnologia que se originará a partir disso. Zaika sublinha: "Debatemos hoje uma transição tecnológica que já aconteceu, a inteligência artificial já está aí. Quem, de fato, aponta fortemente seus usos são as novas gerações. O principal ponto desses caminhos é a necessidade de diálogos entre poder público, população, poder privado e setores da educação".
A aceleração de processos e o grande volume de análise de dados por parte da IA também demandam atenção sobre quem, ou o que detém os controles desses processos, assim como do conceito de verdade, o qual pode vir a ser mediado pelo que as inteligências certificam como sendo o factual. Não só a alfabetização de futuros, mas também a digital tornam-se essenciais no diálogo com a transição geracional mediada pela tecnologia que se vive, ao proporcionar como o pensamento crítico pode reduzir a desigualdade social na sociedade.
Como será o futuro?
O futuro terá muita IA, automação de processos, debate sobre sustentabilidade, sobre segurança de dados. E desafios. E esse é, apenas, o início da lista. O conceito de "inovação" estará muito relacionado à ideia de qual é o impacto social que ela gera. Assim, o letramento sobre a transição tecnológica, desde já, toma um espaço nas discussões em âmbitos empresariais, governamentais e acadêmicos.
Para Zaika, a conversa sobre os impactos que a transição acarretará deverá passar pela democratização do acesso à informação e da educação digital, bem como pela análise crítica do uso das tecnologias para a redução das desigualdades. "O principal ponto desses caminhos é a necessidade de diálogos entre poder público, população, poder privado e setores da educação. Assim como sua principal reflexão, o pensamento crítico como método", reflete.
Sabina assegura que a forma como se analisa o futuro, usualmente, adota um tom binário entre uma perspectiva distópica e outra, utópica. Ela rejeita essa dualidade, trabalhando, desse modo, com o conceito da protopia, em que cada um, utilizando suas ferramentas por meio de ações individuais ou coletivas, poderá mexer no presente para poder criar o futuro.
"A gente vai precisar, cada vez mais, olhar para uma governança de inteligência artificial, como a gente regula, para mitigar preconceitos, vieses? para a privacidade digital, para a proteção de dados pessoais. Isso vai ser um debate central", analisa. Assim como os fóruns a respeito da segurança de dados e da privacidade deverão ser o âmago nos próximos tempos, a pesquisadora também aposta em um avanço na relação entre sustentabilidade e tecnologia, entrando em uma era mais verde. "Só que a grande questão agora é que não basta ser sustentável: a gente tem que ser regenerativo, mitigar os efeitos nocivos daquilo que a gente já fez", ressalta. Por isso, acredita que haverá novas tendências não somente nessa área, mas, igualmente, para a pesquisa em saúde, a qual deverá utilizar a inteligência artificial para acelerar diagnósticos e possibilitar ferramentas que mexam, inclusive, no genoma.
Ela inclui a saúde mental neste rol de tendências, que poderá contar com uma mudança de posicionamento da sociedade, bem como a crescente mudança na pirâmide etária mundial. "Acho que a gente vai quebrar muitos tabus de saúde mental. Acredito que a gente vai ter muita inovação no envelhecimento saudável, a população mundial está envelhecendo, a gente vai ter mais idosos do que crianças no Brasil em pouco tempo. Portanto, a gente vai desenvolver várias tecnologias para estender a nossa longevidade", projeta.
Ambas as futuristas consideram a importância da ética para administrar o que vem por aí. Um pensamento crítico e consciente a respeito das novas tecnologias faz parte da alfabetização de futuros, de maneira que os fatores intrinsecamente humanos são insubstituíveis, apontando para uma intersecção destes com sustentabilidade, tecnologia, e futuros inclusivos. "Toda a questão não é o desenvolvimento tecnológico, mas como o ser humano vai se apropriar dele, como ele vai usar as tecnologias", finaliza Sabina.