A liberdade de ser quem se é

Por Alessandra Primo, para Coletiva.net em especial Diversidade e Comunicação

Alessandra Primo - Crédito: Arquivo pessoal

Que homem branco, de classe média, abdicaria de seus privilégios em uma sociedade patriarcal? Quem, em santa consciência, aceitaria ser parte da minoria LGBTQIAPN+ em um estado misógino e preconceituoso como o Rio Grande do Sul? Quem assumiria o risco de morte em um país onde se mata travestis em nome de Deus? Pois é, eu!

Depois de me negar por tanto tempo, hoje me sinto plena. Quando me olho no espelho, finalmente me reconheço. A mulher que me olha no espelho é aquela que precisou ser escondida por tantas décadas. Sim, iniciei minha transição de gênero aos 50 anos. Apesar de ter sido sentenciada como menino quando nasci em São Gabriel, terra dos marechais, sempre fui Alessandra. Nas primeiras quatro décadas de minha vida performei um gaúcho "acima de qualquer suspeita". Sucumbi a todos os preconceitos. Afinal, travestis, segundo me instruíam, são marginais, drogadas, perigosas. E se não eram profissionais do sexo, não conseguiam emprego além dos salões de beleza e das boates noturnas. São todas profissões que respeito, mas não era o que eu aspirava. Então, eu não permitia que a Alessandra fosse além de meu espelho, em sessões solitárias de experimentação de roupas femininas (o que se chama de crossdressing). Eu tinha medo das consequências: preconceitos, perda de amigos, falta de respeito no trabalho.

Mas a pandemia impôs uma autorreflexão às pessoas em isolamento. E foi só assim que consegui finalmente responder àquelas perguntas existenciais, que evitamos na corrida da vida: "Quem sou?" "Que faço aqui?" E as verdades que sempre estiveram comigo finalmente tiveram coragem de se fazer escutar: "Sou uma mulher." "Sou Alessandra." "Estou aqui para ser feliz." Eu não podia imaginar a sensação de liberdade de reconhecer quem sou me causaria.

Meu círculo de amizades aumentou consideravelmente, principalmente de amigas afetuosas e presentes. Meu e-mail para colegas de trabalho foi respondido com muito carinho e encorajamento. E todes alunes (atuais e anteriores) me receberam com alegria. Ora, minha aparência externa não mudou quem sou. Ou melhor, sendo bastante sincera, mudei internamente sim. Eu me tornei uma pessoa melhor, mais segura e dona de si.

Evidentemente, nem tudo é celebração. Sofro hoje dos riscos que teme qualquer mulher. Ando na rua me cuidando, olhando pra trás. Não apenas por riscos de assalto (mulheres são alvos preferidos) e de assédio, mas também pelo medo de violência física. Não podemos deixar de repetir que o Brasil é o país que mais mata travestis. E de repente me tornei minoria. Passei a ser parte do que se chama de diversidade. Se antes eu me alegrava ser o "S" de simpatizante na ultrapassada sigla GLS, hoje me orgulho de ser o T da comunidade LGBTQIAPN+. Na verdade, essa enorme sigla, que continuará crescendo no ritmo do respeito e do reconhecimento, mistura orientação sexual (como lésbicas, gays, bissexuais, pansexuais, assexuais) com identidade sexual (como trangêneres, não-bináries). Apesar de muitas pessoas terem dificuldade com essa diferenciação, minha maior conquista foi no campo da identidade. Pois é justamente isso que provoca tanto aqueles que se ocupam de julgar as outras pessoas. Ser trans ainda é uma luta para ser quem se é, como sentimos que somos. E que dizer das pessoas intersexo (quase 2% da população mundial), que são muitas vezes amputadas em seus primeiros anos, para que tenham seus corpos "corrigidos" na perspectiva de médicos despreparados, que pensam poder definir a identidade dessas crianças indefesas.

Muitas são as pessoas trans que perderam suas vidas, julgadas por sua identidade, por simplesmente serem quem são. A transgeneridade assusta preconceituosos e falsos cristãos. Ainda desperta olhos curiosos, perguntas invasivas e opiniões não solicitadas. E é um dos alvos preferenciais da extrema-direita. E como sofrem as crianças trans e suas famílias. Por que é preciso sofrer por uma questão identitária pessoal, que não é uma "opção", como pensam alguns. Por que ainda é preciso lutar pela cidadania de quem é diferente da falsa "normalidade"?

No mês da visibilidade trans não quero terminar assim, com este gosto amargo na boca. Quero finalizar este texto celebrando a existência, a liberdade de ser na plenitude. Quem sabe em um futuro breve não precisaremos de coragem para sermos felizes.

Alessandra Primo é professora do curso de Publicidade e Propaganda e do Programa de Pós-graduação em Comunicação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs)

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