O jornal impresso e sua reserva de mercado

Por Gabriel Lima Araujo, para Coletiva.net

Gabriel Lima Araujo - Crédito: Arquivo pessoal

Sabia das coisas, o tio Adão. Tinha o sagrado hábito de se informar pelo jornal. Pela manhã, a Jô, cachorra linguicinha da família, com o faro apurado dos cães, sentia o aroma do primeiro café do dia - preparado pelo tio Adão - e já intuía, com a intuição apurada dos cães, que era o momento de buscar a Zero Hora (ZH) no portão e levar até seu dono. Ele tinha grande admiração pela ZH. O ato se repetia de segunda a sábado. Nas tardes do último dia da semana, a Jô ficava atenta ao segundo cheirinho de café, o vespertino, que, em sincronia ao som da moto do entregador, anunciava a vez de abocanhar a dominical.

Embora pareça uma situação distante, a cena aconteceu até bem pouco tempo atrás. Mais precisamente 2016, quando a RBS colocou na rua o projeto de Superedição, contemplando todo o fim de semana em único volume e seguindo uma tendência de mercado que apontava de forma correta (e ainda aponta) para a redução deste produto. Até 2021, ano em que a sabedoria do tio Adão se transformou em memória, a situação se repetiu religiosamente - à exceção do café nas tardes de sábado.

Era surdo, o tio Adão. Perdera a audição por acidente de trabalho. Ainda assim, comunicava-se como ninguém, fosse com a família, os parentes ou os amigos, dos quais realizava leituras labiais perfeitas, fosse com a Jô, que sabia: não adiantava latir. Quando algum interlocutor da roda de conversa tinha a pretensão de situá-lo no assunto, ele afirmava, no alto tom dos surdos, categórico: eu entendiiii. Assim mesmo, com o prolongamento da vogal como marca registrada. Sabia das coisas, o tio Adão.

O tio Adão guardava recortes de toda publicação que contivesse algum motivo para sua afeição. Na pasta, há (ainda estão lá!), por exemplo, notícias com participações dos meus irmãos em entrevistas. Uma para o extinto caderno Vestibular, com o primogênito na corrida por uma vaga em jornalismo, em 2004; e outra com o caçula, num especial sobre os Jogos Pan-Americanos 2007, que buscava cases de apaixonados em acompanhar as disputas por medalhas de todas as modalidades. Eu, irmão do meio, entrei na seleção de conteúdos mais tarde, em 2017, quando, já como colaborador da RBS, assinei minha primeira coluna De Fora da Área sobre o saudoso Olímpico Monumental. Ele a separou com afeto, apesar de colorado.

Existem outras reportagens e colunas lá; contudo, foi essa que o Marlon, filho do tio Adão, encontrou e me contou, emocionado, ao lembrar do pai. O Marco, irmão do Marlon e também filho do sábio homem, que exibia, ainda, humildade e simplicidade entre suas características, ouvindo a prosa, emendou:

- Gabriel, a Zero Hora nos ofereceu alguns tablets pela assinatura digital e eu precisava ficar repetindo "meu pai, além de surdo, é idoso e analógico, ele não quer nenhum tablet, ele quer o jornal".

Ainda por cima é inclusivo esse tal papel. Bem verdade que uma inclusão às avessas de quem não conseguiu acompanhar o tempo; porém, uma inclusão. A abordagem aconteceu algumas vezes, na época de lançamento do famigerado e de curta vida ZH Noite, que tinha nessa oferta uma de suas estratégias comerciais.

No começo de dezembro último, quando o jornalismo esportivo rememorou os 40 anos da conquista do Mundial do Grêmio, não pestanejei em acionar um assinante fiel do Correio do Povo (CP), o tio Tomaz, da família de minha esposa, para pedir que reservasse a mim o caderno especial que circulou junto à edição ordinária e trazia a íntegra da Folha da Tarde daquele fatídico 11 de dezembro de 1983. Um primor de cobertura em texto, imagens e edição difícil de se ver. Vivido, experiente e viajado, o tio Tomaz lê diariamente o CP. Tal qual o tio Adão fazia, com a única diferença da preferência editorial, ele aprecia durante a leitura, na companhia de um café filtrado, quatro dos cinco sentidos presenteados ao corpo humano: visão, tato, olfato e paladar, sem abrir mão do bom silêncio. Neste caso, por escolha. Sabe das coisas, o tio Tomaz.  

O Carlos Augusto, cuja alcunha é tio Alemão (também da família de minha esposa, mas de outro lado), por sua vez, sai toda manhã à cata do Diário Gaúcho. Conhece tudo o que tem de conhecer, lê tudo o que precisa ler, conversa sobre os mais diversos temas sem receio de gafe qualquer. A sua simples e aconchegante casa tem tanto kit do Junte&Ganhe que é preciso abrir espaço. De novo, a diferença está na capa folheada, acrescida de mais alguns pormenores. Feito os outros dois, abre o jornal acompanhado de um cafezinho. Lota a xícara de açúcar. Ao contrário deles, não consegue se ausentar dos barulhos, pois não é pouca a poluição sonora da vizinhança. Mas atenta para cada página depois de recortar o selo da promoção. Sabe das coisas, o tio Alemão.

Sou um romântico do jornal impresso (nem deu pra notar!). Talvez o último (espero que não!). De quando estudante da Famecos, entre 2009 e 2014, lembro das trocas com o professor Eduardo Pellanda, Mestre e Doutor em Comunicação, de quem os ensinamentos eu deveria ter aproveitado tanto quanto o fiz nas aulas de alguns dos seus colegas. O romantismo dele era (talvez ainda seja) relacionado às infinitas possibilidades de recursos que a internet proporciona. À época, diminutas na comparação com hoje. Mas o Pellanda já tinha conhecimento de que a velocidade de transformação do meio seria exponencial, como de fato foi. Uma vez, em alguma resenha no saguão da faculdade, ele disse "o jornal tem apenas reserva de mercado". Ao que eu respondi, de pronto, "eterna reserva de mercado". Por ser impossível saber, o silêncio se fez, entre olhares que disseram o suficiente. Sabe das coisas, o Pellanda. 

O que não se imaginava é que logo ali à frente esse universo incalculável de possibilidades do ambiente virtual seria permeado pela permissividade. O espaço que tudo deixa virou-se contra o bom jornalismo, potencializou a desinformação e fez com que boa parte do tempo dos jornalistas de redações se transformasse em dedicação para desmentir absurdos. 

Em tempos de inteligência artificial que replica vozes idênticas em montagens quase perfeitas nas telas, e de falsas páginas da web visualmente iguais aos sites jornalísticos, a credibilidade do jornal impresso segue intacta e inabalável. É o papel que documenta. É o papel que comprova. É o papel que aciona o gatilho da memória afetiva. É o papel a lembrança física. É o papel que vira quadro nas paredes do Bar do Beto e nos escritórios de empresas consagradas. E, principalmente, é o papel que não aceita qualquer coisa. Que loucura é o tempo! Menos de dez anos e, quem diria?, a delimitação de texto, antes vista como problema, hoje, é diferencial. Naquele exíguo espaço, só se trabalha em cima de fatos. O papel pauta.

Talvez o Pellanda tenha razão. Ou talvez a credibilidade e as adaptações de linguagens e formatos salvem o produto (manchetes não podem nascer velhas e tabelas de futebol com asterisco de "partida não finalizada até o fechamento da edição" não fazem sentido). Tenho convicção de que a minha torcida é a mesma da do Pellanda, de vida longa à reserva de mercado do jornal impresso. Para que continuemos convivendo e conversando com pessoas que sabem das coisas. Porque as páginas da história são produzidas, escritas e editadas por quem tem a intuição e o faro dos cães - após reuniões regadas a café.

*Dedicado a bons colegas de profissão e consumidores de jornalismo. Pessoas que sabem das coisas

Gabriel Lima Araujo é gerente de Comunicação na Moglia Comunicação ([email protected])

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