Quando o eu atravessa o outro - intersecção e transformação

Por Bárbara Ramos, para Coletiva.net, em especial de Diversidade e Comunicação

Bárbara Ramos - Crédito: Arquivo pessoal

As primeiras vezes são, quase sempre, impactantes em nossas vidas, independente do teor afetivo que dedicamos a essas lembranças. Percebi, ainda na infância, que eu era diferente. Talvez fosse só o nariz, o cabelo, talvez eu fosse mais escurinha que alguns mas, olha, eu até que era bem clarinha perto de outros. Ou até pensava que poderia ser o fato de eu me aficcionar por assuntos diversos em determinadas épocas da vida, ou gostar de mais de uma pessoa ao mesmo tempo. Sempre achei que era uma diferença boba, nunca me passou pela cabeça que seria algo estrutural.

A primeira vez que me entendi bissexual foi durante a adolescência. A culpa cristã, a qual a lógica católica de nossa sociedade ocidental submete nossos ditos pecados, sempre nos faz acreditar que o sentimento entre pessoas do mesmo gênero é algo errôneo. Foram anos até minha própria aceitação. 

Já a primeira vez que me entendi e passei a me autoafirmar mulher negra, foi durante a universidade. Vivi anos blindados em colégio religioso, particular, rodeada de pessoas que eram diferentes de mim esteticamente, culturalmente e financeiramente. Foi em um seminário durante a graduação em Jornalismo que eu me entendi mulher negra, e a partir de então venho compreendendo dores passadas e atuais, decorridas da dinâmica de sermos quem somos na sociedade em que vivemos.

Que sociedade é essa em que estamos inseridos?

A antiguidade no continente europeu teve sua sociedade construída através de invasões e tomada de povos de outros continentes próximos àquela região, com a prática de anexação de terras, aculturação desses povos e escravização dos corpos. Considerando que a sociedade é fruto de uma construção social da realidade, conforme elaboram os teóricos Peter Berger e Thomas Luckman, não há espanto algum em saber que, com as grandes navegações avançando a partir do século XV, o sistema de dominação de povos e globalização de culturas se espalharia pelo ocidente e o restante do mundo.

A história já é conhecida por muitos de nós, mas assim se afirmou e configurou o capitalismo, a partir da progressão do escambo para a moeda, a partir da manutenção dos poderes através das instituições, a partir do controle social e pressão social que sofremos a todo momento para seguirmos um padrão e manter as engrenagens girando, lubrificadas, e sem atrasos.

Foi, também, durante a universidade, a primeira vez que me dei conta de qual sociedade realmente vivemos. Meu povo foi tirado da sua terra originária, escravizado e torturado. E ainda hoje vive os reflexos e sofre com as mesmas práticas, travestidas com uma roupagem pós-moderna para não parecer tão cruel e não impactar tantas pessoas. A dor do povo negro dificilmente é sentida. A dor da população LGBTQIANP+ dificilmente é sentida. Somos invisibilizados. Somos muitos e nos chamam de minoria para ferirem nossos direitos. Que direito, não é mesmo? A quais direitos teremos direito se não estivermos unificados para enfrentar quem acha que não somos "direitos"?

Interseccionar para construir uma sociedade diversa e uma comunicação inclusiva

Olhar para o eu nos atravessa tão profundamente, que olhamos para o outro com muito mais cuidado e interesse. Imaginamos quem é o outro pelo espaço em que ele frequenta, pela comida que ele come, pela maneira que se veste. Sabemos quem é o outro quando o espaço está aberto para que ele fale sobre si. Incluir na comunicação é abrir espaços para que pessoas diversas dêem passos, é apresentar meios para o outro esteja presente nos lugares em que ele nunca havia sido mencionado, é poder dar visibilidade ao que já existe, mas não estava registrado.

Inserir é diferente de incluir, e interseccionar é preciso justamente para que todos estejamos juntos na reconstrução da cultura desse sistema. Inserir é dizer que um povo está presente e contribuindo, mas sem manter políticas que ajudarão aquela população, há tanto excluída, a seguir lubrificando a engrenagem. Incluir é difusionar essas políticas para que a população tenha acesso às diversas instituições do país e do mundo. Interseccionar significa nos unirmos em todos esses lugares, apoiando nossas diversas causas, para que a transformação e a revolução aconteçam, pois se quisermos realmente acabar com o racismo e os diversos tipos de preconceito existentes, precisamos chacoalhar a base do sistema e fazer cair o topo, para então replantar a planície.

Bárbara C.M. Ramos é jornalista, diretora do filme 'Dialoganja: um documentário sobre a maconha como pauta no jornalismo brasileiro' e ativista pela legalização das drogas.

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