Não aguento mais ser ou não ser Charlie

Li um artigo de um tal Rafo Saldaña, sobre os atentados em Paris. Ele merecia ser examinado linha por linha, porque em vários momentos …

Li um artigo de um tal Rafo Saldaña, sobre os atentados em Paris. Ele merecia ser examinado linha por linha, porque em vários momentos me pareceu perigoso, mas confesso meu cansaço e a sensação de total inutilidade dessa discussão. Vou meter minha colher apenas numas duas ou três coisinhas.
Saldaña: "O fato do Charlie Hebdo desrespeitar outras religiões não é atenuante, é agravante. Se as outras religiões não reagiram a(sic) ofensa, isso é um problema delas. Ninguém é obrigado a ser ofendido calado". Pra começo de conversa, religião nenhuma reage a nada, quem reage são os fiéis. Quanto à crase, um aviso: não caiu com a última reforma.
É agravante? Saldaña está dizendo que os humoristas tiveram sorte - podiam ter sido assassinados antes por fanáticos de outras tendências. Mas é atenuante, sim. É sinal de que eles atacavam crenças tribais por serem absurdas em si mesmas, não por serem de determinada tribo. Agravante seria se, por exemplo, atacassem os absurdos islamitas em defesa dos absurdos católicos.
Ninguém é obrigado a ficar calado ao ser ofendido? Muito bem, mas mandar bala é calar, não responder. Como disse o Luis Fernando Verissimo, levar uma bala na cabeça é uma ofensa um pouco maior que ouvir uma gozação. Ou como rezou um twitter inglês: "Eu sou Deus Todo Poderoso, sou Onisciente e Onipresente, o criador dos Tempos e dos Espaços, e posso muito bem aguentar a porra de uma piada". Em bom português, Saldaña está dizendo: tomem, é o que acontece com quem desrespeita a crença dos outros. Se uma crença justifica assassinatos, tem mais é que ser desrespeitada, me parece. Não se pode dar mole pra uma crença dessas. Nem importa que seus fiéis sejam uns coitadinhos e que seus críticos sejam de mau gosto. É simples, botou o dedo no gatilho, perdeu a razão.
Saldaña acha que o governo francês devia ter enquadrado o jornal: pode criticar, mas até determinado limite. Isso até pode parecer bonitinho, teoricamente. Gostaria de ver como aplicar na prática. Teriam de chamar o Saldaña pra apontar qual o limite aceitável.
Saldaña também poderia propor que autoridades do islamismo enquadrassem seus fiéis: reajam a críticas, mas dentro de certos limites, como zombar das crenças de humoristas descrentes.
Saldaña acha que os humoristas fomentavam o ódio, ao retratar todo muçulmano como terrorista. Que isso é um estereótipo. Pode ser. Mas me pergunto: se você desenha um muçulmano com um fuzil na mão você desenha todos os muçulmanos ou apenas os muçulmanos que andam com fuzis vingando ofensas? Pelo menos, vi muitos muçulmanos desautorizando os terroristas, como uma mulher, com burca e tudo, segurando um cartaz: não em meu nome.
Ao fazer piadas com crenças absurdas (não venham me dizer que acreditar que se ganha milhares de virgens no paraíso como recompensa por morrer pelo profeta e achar que as mulheres devem ser tratadas como um rebanho de vacas não seja absurdo ou, pra ficarmos na palavrinha aquela, ofensivo) você ataca um povo ou o sistema de pensamento que sustenta determinada religião? O problema é que Saldaña não parece se importar com essas sutilezas, tão condoído que está com a pobreza dos muçulmanos. Pegar em armas e andar matando a torto e a direito fomenta muito mais ódio, me parece. Ou treinar e armar fanáticos religiosos, como começou a ser feito no governo de Jimmy Carter.
Correção
Rafo Saldanha: "O poeta satírico francês Jean de Santeuil cunhou a frase: "Castigat ridendo mores" (costumes são corrigidos rindo-se deles)". Esta frase é de Juvenal. Aliás, tão manjada que até um ignorante como eu sabe. O Rafo Saldaña nem desconfiou: por que um francês diria isso em latim?
O historiador Peter Watson
Em El País: "Costuma se encontrar o fanatismo entre os mais jovens e ignorantes, principalmente homens, opina o pesquisador. Para eles, a fé extremista é atrativa, explica, "porque não exige nenhum trabalho ou conhecimento, oferece a promessa de resultados rápidos e, claro, promete a camaradagem, a pertença. Mas o islã perdeu seu argumento"".
A fé, segundo Aldous Huxley
"A fé é apenas a estupidez organizada e dirigida. Pode ser que remova uma ou duas montanhas em virtude apenas de cabeçadas insistentes; mas usa antolhos e não pode ver que, ao mover montanhas, não as destrói, somente as muda de um lugar para outro. Para ver isso é preciso inteligência; mas a inteligência adianta pouco, porque ninguém se entusiasma por ela; ela está à mercê do primeiro Hitler ou Mussolini que apareça - de quem quer que possa despertar entusiasmo; e pode-se despertar entusiasmo por "qualquer" causa, por mais idiota e criminosa que seja."

Autor
Ernani Ssó se define como ?o escritor que veio do frio?: nasceu em Bom Jesus, em 1953. Era agosto, nevava. Passou a infância ouvindo histórias e, aos 11 anos, leu seu primeiro livro sozinho:Robinson Crusoé. Em 1973, por querer ser escritor, entrou para a Faculdade de Jornalismo, que deixou um ano depois.  Em sua estréia, escreveu para O Quadrão (1974) e QI 14,(1975), publicações de humor. Foi várias vezes premiado. Desenvolve projetos literários para adultos e crianças.

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