Aconteceu com uma de nós. E dói em todas nós

Assim começou o depoimento na página do Facebook "Se esta rua fosse minha" da universitária estuprada no dia 9 de março, perto das 12h, …

Assim começou o depoimento na página do Facebook "Se esta rua fosse minha" da universitária estuprada no dia 9 de março, perto das 12h, na Redenção, ali no coração verde de Porto Alegre, que se orgulha de comemorar, esta semana, 243 anos. A jovem, que poderia ser filha, sobrinha, afilhada, neta, irmã, prima, amiga de qualquer uma de nós, fez um relato doído, amargo, sensível e preocupante, em que além da brutalidade do ato em si, denuncia o péssimo atendimento que teve na Delegacia da Mulher e no Departamento Médico Legal. Uma das constatações que a moça faz, entre tantas, que me fizeram chorar, destaco, neste início de coluna esta: "a vida não tem valor, o corpo não tem valor, a liberdade não existe".
Deveria ter tratado do tema na semana passada, quando o caso era mais recente. Só que estava ainda impactada com o ocorrido. Não só em apoio incondicional à moça que sofreu o estupro. Mas também pelo fato de que um dia antes do ocorrido, nas atividades em Porto Alegre do Dia Internacional da Mulher, gurias, adolescentes, senhoras e velhas de todas as raças, etnias e orientação sexual sentaram sobre colchas e cangas espalhadas na grama da Redenção para debater os avanços da luta feminina e a necessidade de um empoderamento cada vez maior. A mesma grama que foi cama, um dia após, de uma violência sexual (e quantas outras ali acontecem e nem denunciadas são?).
O que posso dizer para a universitária violentada que teve seus gritos abafados pelas mãos dos agressores a lhe tapar a boca e pelo tráfego de carros da rua? O que posso falar para esta moça que não se lembra do rosto dos estupradores, mas não esquece um minuto sequer daquelas mãos rápidas e vorazes a passear pelo seu corpo? Como ser solidária com uma mulher que não teve a solidariedade dos que passavam pelo local e pareciam que assistiam a uma cena cotidiana e nem demonstraram espanto nenhum com a violência? Em que condições este ser humano continuará levando uma vida normal e caminhando pela cidade de 243 anos com as marcas daquelas quatro mãos como lâminas em seu corpo?
Não sei escolher as palavras ou as ações para ajudar a reduzir a dor da moça humilhada, jogada no chão, revirada, assaltada, abusada. Sinto-me impotente. E com uma dor enorme, de intensidade evidentemente menor que a dor sentida pela estuprada. Não sei o que escrever para atenuar o sofrimento da universitária violada à luz do dia, sem que ninguém lhe ajudasse ou espantasse os criminosos. Sinto-me fragilizada. Sinto-me sem assistência. E com um medo enorme de caminhar em locais coloridos de verde da minha cidade em horários de intenso movimento. Um temor nem comparado ao sentimento experimentado pela jovem que foi estuprada.
Tão cruel quanto o desabafo da menina ao falar sobre o estupro foi o relato do atendimento especializado que ela não teve na Delegacia da Mulher, onde, além de ser atendida por um homem e por diversas vezes aconselhada a não ir adiante com a denúncia. Sem falar que não teve privacidade nenhuma para expor o ocorrido. Mais assustador ainda o que ela ouviu na delegacia: "o Governo do Estado cortou a hora extra e por isso não tem policiamento na rua", ou "acho que vale mais a pena tu comprar um spray de pimenta e ir pra Zero Hora". A situação piora quando ela vai ao Departamento Médico Legal para o exame de corpo de delito. Num prédio sem luz, onde ficou numa recepção com 15 presos homens, algemados, é informada que o exame seria feito por um perito.
E encerro com parte do depoimento da mulher, que poderia ser qualquer uma de nós: "O que mais me choca é que, enquanto escrevo, muitas mulheres passam pelo mesmo. E muitas, mas muitas pessoas, nem sequer sabem da existência desse problema social. Espero que as palavras que escrevo com dor sirvam pra reflexão de tantos que menosprezam a importância da luta das mulheres por uma sociedade mais segura, justa e solidária".  Pois, aconteceu com uma de nós, e dói em todas nós. Continuaremos na luta para que um dia não mais aconteça.

Autor
Márcia Fernanda Peçanha Martins é jornalista, formada pela Escola de Comunicação, Artes e Design (Famecos) da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), militante de movimentos sociais e feminista. Trabalhou no Jornal do Comércio, onde iniciou sua carreira profissional, e teve passagens por Zero Hora, Correio do Povo, na reportagem das editorias de Economia e Geral, e em assessorias de Comunicação Social empresariais e governamentais. Escritora, com poesias publicadas em diversas antologias, ex-diretora do Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Rio Grande do Sul (Sindjors) e presidenta do Conselho Municipal dos Direitos da Mulher de Porto Alegre (COMDIM/POA) na gestão 2019/2021. E-mail para contato: [email protected]

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