Meu violento anticomunismo

Dois leitores me chamaram de anticomunista. Até aí morreu o Neves, porque é como se me chamassem de anticachaceiro ou antidepilação, mas senti nas …

Dois leitores me chamaram de anticomunista. Até aí morreu o Neves, porque é como se me chamassem de anticachaceiro ou antidepilação, mas senti nas entrelinhas que esse rótulo parecia definir toda a minha vida, todas as minhas opiniões e sentimentos, coisa que seria correta caso eu fosse uma caricatura. Talvez ainda houvesse no rótulo uma espécie de desprezo, meio como se me chamassem de burro e desonesto ao mesmo tempo. Mas eu me pergunto: como alguém pode brandir uma palavra dessas depois dos crimes de Stalin e de Mao? Sejamos francos: se comunismo é o que Stalin e Mao fizeram - alguns milhões de cadáveres, desmandos de um irracionalismo assombroso, a aniquilação da arte e da literatura etc. - eu sou anticomunista. Se comunismo é o delírio que levou à Intentona, eu sou anticomunista. Se comunismo é a incompetência política do partido demonstrada em 64, eu sou anticomunista. Agora, se estamos falando de justiça social, bueno, aí eu sou anticapitalista até debaixo d"água. Só acho que não devemos ficar tão fascinados com nossos desejos que percamos a realidade de vista, exatamente como aconteceu na Intentona, episódio trágico, porque de um cômico grotesco.
Papagaiada sobre Borges e Cortázar
Segundo Antônio Xerxenesky, a famosa crítica argentina Beatriz Sarlo afirmou "que, durante a faculdade, ela e todos [os] seus colegas se recusavam a ler Borges pois o autor de  Ficçõ es era supostamente de direita e fora condecorado por Pinochet. Em vez disso, Sarlo e seus colegas liam fervorosamente Julio Cortázar. Que grande erro, afirmou Sarlo na palestra, pois nos dias de hoje (que, na época, era 2007), Borges continuava sendo um objeto de fascínio, enquanto Cortázar não lhe interessava mais".
Fui um pouquinho mais esperto na minha adolescência, ou tive mais sorte. Comecei a ler Borges sem saber que o acusavam de direitista e Cortázar sem saber que apoiava Cuba. Daí, ao saber logo em seguida, não me deixei levar, porque a literatura de Borges não tem nada a ver com política e a de Cortázar tem a ver muito vagamente, num ponto ou noutro. As opiniões pessoais dos autores poucas vezes - pouco demais até - interferem em sua literatura, se ela nasce de sentimentos profundos. Virar as costas pro talento de um escritor por causa de suas opiniões políticas ou porque é contra ou a favor da depilação feminina não me parece digno nem de um leitor mediano.
Fala-se muito hoje no fascínio de Borges - principalmente os acadêmicos falam. Acho um pouco de graça, porque a maior parte desses acadêmicos se entretém com uma papagaiada quase sempre obscura e trivial. Parecem esmagados pela erudição de Borges e não se dão conta das inumeráveis brincadeiras dele, da leveza extraordinária e do poder acachapante de sua fantasia ao nos dar imagens de coisas abstratas, como da insônia em "Funes, o memorioso" ou a obsessão que ilustra a palavra inesquecível em "O zahir". Esse propalado fascínio me parece ou pura superstição ou uma atitude, como se tatuar e botar uma jaqueta de couro e andar de moto com cara de mau. Yo soy borgeano, che. Abram alas. Pra escrever sua tese ou trabalho de conclusão é bom fazer parte de alguma tribo, ou você se ferra direitinho.
Se hoje a dona Sarlo não se interessa mais por Cortázar, problema dela. Nem Cortázar nem Borges têm culpa. São autores muito diferentes, pra serem lidos por gente com necessidades diferentes, como quaisquer outros grandes escritores. Não se trata de medir qualidade literária com uma régua. Guarde o sistema decimal pra construção civil, por exemplo, ou pro caso de autores muito ruins. As medidas da literatura são um pouco mais complicadas, mais elásticas, e dependem das estações do ano e de estações mais íntimas, mais pessoais.
Acho que escrevi aqui mesmo, em outra coluna, que até o humor de Borges e Cortázar é diferente. O horror e a alegria também - a metafísica impalpável de um, a metafísica na rua, na cama, nos cafés do outro. Mais: há coisas que um sabe e o outro não. Cortázar não tem a precisão de Borges; Borges não tem a versatilidade estilística de Cortázar; Cortázar não sabe o que fazer com a teologia; Borges não sabe o que fazer com o sexo; Borges é fluente, mas pausado, medido, não sabe escrever um monólogo desatinado, coisa que Cortázar faz com uma mão amarrada. Acho mais fácil aprender a fluência tranquila de Borges que o luxuoso malabarismo técnico de Cortázar, coisa que nunca entra nas contas dos detratores de Cortázar.
Enfim, por que embarcar nas modas ou mesmo criá-las? Por que cagar regras? Por que transformar tuas obsessões ou inseguranças em amuletos pra mostrar pros aldeões assustados e ignorantes? Falando em nossas necessidades, literatura fica ao lado do pão, não de bolachinhas, recheadas ou não.
Ainda o mesmo angu
No mesmo texto, Xerxenesky fala do espanto de uma tradutora argentina com a mania dos brasileiros de gostar de Cortázar. Segundo ela, você lê Cortázar no colégio e depois esquece: "A disputa não é Borges versus Cortázar, mas Borges versus Bioy". Disputa? Como disputa? Literatura não é boxe ou corrida de cavalos, faça-me o favor. Mesmo em lutas de boxe e corridas de cavalo o acaso tem seu peso.
Em tempo: quem é Bioy? Um filhinho de papai, cheio da bufunfa, que não tinha nada pra fazer além de se meter com mulheres, jogar tênis, e que resolveu escrever. Sim, resolveu, não se nota nos livros dele a necessidade, a paixão do escritor. Seus livros são construídos, como confessou em suas memórias, coisa corroborada por algumas amantes: planejados até nos detalhes, com a colaboração das amigas. Depois dessa bolação toda, redigia. Fora O sonho dos heróis, o que ele escreveu de realmente bom? Um que outro conto num amontado de contos ralos e sem graça. Ideias excelentes como a de A invenção de Morel têm execuções sofríveis.
Eu caí na asneira de comprar o primeiro volume das obras completas dele. Li metade mais ou menos e parei de puro tédio. Mas ainda assim encarei Dormir ao sol, porque achei o título sensacional e porque os críticos dizem que o tema são os problemas domésticos com a mulher, coisa de que ele entendia de perto. Topei mais uma vez com uma enjambração insustentável, um cientista que faz uma espécie de lavagem cerebral nas pessoas, pra que fiquem boazinhas, tipo um cachorrinho dormindo ao sol. Até o título ele desperdiçou.
Por falar em mulher, a dele, Silvina Ocampo, me parece muito mais talentosa, mas como não foi amiguinha de Borges, não tem mídia. Assim vamos, no reino encantado da literatura.

Autor
Ernani Ssó se define como ?o escritor que veio do frio?: nasceu em Bom Jesus, em 1953. Era agosto, nevava. Passou a infância ouvindo histórias e, aos 11 anos, leu seu primeiro livro sozinho:Robinson Crusoé. Em 1973, por querer ser escritor, entrou para a Faculdade de Jornalismo, que deixou um ano depois.  Em sua estréia, escreveu para O Quadrão (1974) e QI 14,(1975), publicações de humor. Foi várias vezes premiado. Desenvolve projetos literários para adultos e crianças.

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