O salão de Doña Isabel

"Era um baile, um casamento Quem sabe algum batizado Eu não era convidado Mas tava ali de cruzada."  (João da Cunha Vargas)  *** A …


"Era um baile, um casamento

Quem sabe algum batizado

Eu não era convidado

Mas tava ali de cruzada."

 (João da Cunha Vargas)

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A primeira vez que ouvi o nome dela, foi entreouvindo uma conversa de galpão. Os tios tomavam mate com a peonada e eu, como guri metido, ficava na porta, ouvindo as conversas dos mais velhos - e tentando aprender alguma coisa. Então fiquei sabendo que, nas bandas do Camaquã, havia algo bem mais interessante do que bois e ovelhas. Era o salão de Doña Isabel, uma uruguaia de idade incerta, que ali chegara, seguindo o caminho dos antigos tropeiros de gado.
No início, era uma casa de pouso, procurada por viajeiros cansados e famintos. A hospitalidade da uruguaia era famosa - além de cama limpa e sem piolhos, os hóspedes, antes de seguirem viagem, podiam se servir de mate e de um naco de costela de ovelha.

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O tempo passou e a pensão - não mais uma casa de pouso - cresceu e prosperou. Mas Doña Isabel enxergava longe. Um novo negócio foi aberto nos fundos da pensão, onde passou a funcionar um animado fandango aos sábados à noite. Uma dupla de violeiros da fronteira e um concertista de bandoneón, vindo de Montevidéu, animavam a casa. Em pouco tempo, o sucesso sorriu mais uma vez para Doña Isabel.
Nas noites de festa, o lugar ficava movimentado, com cavalos bem-encilhados, charretes, carroças e até um Ford de Bigode, com placas da Capital. Os bailecos começavam pontualmente às 8h, mas muito antes, de longe já se ouviam os chotes e valsas, alegrando a turma dos que chegavam com suas roupas domingueiras, lavados, penteados e perfumados com Cashmere Bouquet. Todos elogiavam os violeiros e o uruguaio do bandoneón, que tocava milongas com tal capricho que muitos vinham de longe só para ouvi-lo. Corriam boatos de que viera fugido do Uruguai, por ter se metido com a noiva de um delegado da aduana. O preço do ingresso era cobrado de acordo com a fama do freguês - os mal falados pagavam mais, vizinhos e peões amigos, pagavam só a metade. E havia uma regra de ouro: chinocas bonitas e meninos de cara boa entravam de graça. No entanto, a casa tinha sua disciplina - quem bebia demais ou dançava apertado era convidado a se retirar. Quem cuidava das coisas era um crioulo de nome Eusébio, um paisano de confiança de Doña Isabel. Tinha quase dois metros de altura e usava um desaforado lenço maragato no pescoço. Ficava rondando pelo salão, não permitia palavrões, nem dançar de esporas ou usar adaga na cintura.

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 Tudo isto eu ouvia da porta do galpão, quando os peões proseavam na roda do mate. Ao mesmo tempo, calculava o tempo que faltava para completar meus 18 anos, para poder conhecer o salão de Doña Isabel. No entanto, quando minha hora chegou, junto vieram notícias tristes. Parece que, durante um fandango mais animado, um dançarino puxou uma adaga para o gaiteiro uruguaio. Na mesma hora, levou dois tiros do crioulo Eusébio, que fugiu a cavalo.
A polícia fechou o salão e Doña Isabel, abalada com a tragédia, voltou para o Uruguai, levando com ela o gaiteiro e seu bandoneón.

Autor
José Antônio Moraes de Oliveira é formado em Jornalismo e Filosofia e tem passagens pelo Jornal A Hora, Jornal do Comércio e Correio do Povo. Trocou o Jornalismo pela Publicidade para produzir anúncios na MPM Propaganda para Ipiranga de Petróleo, Lojas Renner, Embratur e American Airlines. Foi também diretor de Comunicação do Grupo Iochpe e cofundador do CENP, que estabeleceu normas-padrão para as agências de Publicidade. Escreveu o livro 'Entre Dois Verões', com crônicas sobre sua infância e adolescência na fazenda dos avós e na Porto Alegre dos velhos tempos. E-mail para contato: [email protected]

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