O crioulo Eusébio

" Era um aspa-torta, gaúcho mui andado no mundo e mitrado. Pela pinta, devia ser um maturrango." Simões Lopes Neto. *** Depois daquela fuga …

sem titulo" Era um aspa-torta, gaúcho mui andado no mundo e mitrado.

Pela pinta, devia ser um maturrango."

Simões Lopes Neto.

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Depois daquela fuga no meio da madrugada, o crioulo Eusébio sumiu por algum tempo. Virou foragido e o delegado da vila  desistiu de procurá-lo. Até que um dia, o homem amarrou seu cavalo baio na porta da delegacia e se apresentou para ser preso. Declarou que não estava arrependido de ter baleado um desordeiro bêbado, pois estava apenas cumprindo seus deveres, evitando que o gaiteiro de Doña Isabel fosse sangrado no meio do salão.

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O delegado conhecia por demais a fama de Eusébio, que tinha um prontuário de arrepiar cabelos. Quando Eusébio tirou a camisa na cela, viu que as lendas eram verdadeiras - seu peito parecia um mapa, riscado de cicatrizes, cortes e costuras. Ali se contava um pedaço da história da comarca, as ferozes brigas de terras e os tiroteios com ladrões de gado. Nas bodegas da região corria uma estória famosa, de como Eusébio e meia dúzia de peões assustados protegeram as fazendas abandonadas quando chegaram os castelhanos, pilhando tudo o que encontravam pela frente, apavorando mulheres e crianças. Para quem o conhecera no passado, Eusébio era um homem de coragem, mas poucos o queriam por perto. Eles resmungavam, baixinho:
" Negro degolador não pode ser gente de bem ".
Com tudo isso na cabeça, o delegado foi se consultar com o Dr. Cisneiros. O juiz de direito da comarca era um homem sério, que não dava ouvidos a conversalhadas, nem a fuxicos de comadres. Êle era o orgulhoso dono do único Ford de Bigode da cidade, um modelo T, trazido de barca desde a Capital. Fora presente de um fazendeiro, agradecido por ter suas terras de volta depois de uma demanda de familia, que lhe branqueara todos os cabelos. O juiz recebeu o delegado em pé em sua sala, ouviu o caso sem falar nada. Andava para cima e para baixo, parando na janela, olhando a praça, onde as pessoas entravam e saiam da capela caiada de branco. Então, perguntou ao delegado se o indivíduo que tentara matar o gaiteiro estava morto ou vivo. E se o revólver usado tinha cheiro de pólvora. O delegado, conhecendo as manhas do juiz, foi cauteloso: o baleado já estava curado e, no momento, bebia caña no boteco da praça; quanto ao gaiteiro, voltara para a Banda Oriental. Fez uma pausa e acrescentou que Eusébio jogara seu .38 no rio Camaquam. O delegado sabia que era mentira - e o juiz também.

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Como homem justo que era, o delegado muitas vezes, esquecia do Código Penal e dava um jeito de livrar gente inocente de mofar no presídio de Pedras Brancas. No caso de Eusébio, pensou em passar um sermão e mandá-lo cuidar da vida em outras plagas.  Mas, na hora em que entrou na cela, esqueceu o discurso, quando viu que o peito e as costas do crioulo não tinham nem sinal dos cortes de faca, costuras e cicatrizes.
E carregava no pescoço um patuá Kurundu, daqueles feitos pelos hechiceros das Missões, que os guaranis usavam para se proteger dos tiros e facadas. O delegado achava graça nas crendices de índios, mas ficou mudo quando ouviu a despedida do crioulo:

" Doutor, este patuá salvou minha vida mais vezes  do que mereço. Da última vez, foi naquele salão, quando a faca que ia furar o gaiteiro me entrou no peito, bem aqui, na altura do coração " .

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Autor
José Antônio Moraes de Oliveira é formado em Jornalismo e Filosofia e tem passagens pelo Jornal A Hora, Jornal do Comércio e Correio do Povo. Trocou o Jornalismo pela Publicidade para produzir anúncios na MPM Propaganda para Ipiranga de Petróleo, Lojas Renner, Embratur e American Airlines. Foi também diretor de Comunicação do Grupo Iochpe e cofundador do CENP, que estabeleceu normas-padrão para as agências de Publicidade. Escreveu o livro 'Entre Dois Verões', com crônicas sobre sua infância e adolescência na fazenda dos avós e na Porto Alegre dos velhos tempos. E-mail para contato: [email protected]

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