Cervantes e a violência contra a mulher

No começo do ano passado, Marta Garcia, então editora de clássicos da Cosac Naify, me convidou para traduzir as Novelas exemplares, de Miguel de …

Novelas Exemplares | Crédito: Divulgação
No começo do ano passado, Marta Garcia, então editora de clássicos da Cosac Naify, me convidou para traduzir as Novelas exemplares, de Miguel de Cervantes. Eu sabia, claro, o tamanho da encrenca que topava, mas sabia também a satisfação que dá espremer os miolos linha a linha. Foram oito meses, mais ou menos. Oito meses puxados, uma verdadeira esfrega, mas hoje dá para olhar o volume - lindo, por sinal - e sentir aquele calorzinho no peito que é o melhor sinal de que valeu a pena. Junto com esse calorzinho vem uma espécie de surpresa: minha nossa, como eu consegui? Com o livro na mão, a lembrança da trabalheira se apaga e a coisa parece mágica.
Uma novidade foi no trabalho de edição - ou nem posso chamar de trabalho? Eu tinha traduzido anos atrás Heróis Demais, de Laura Restrepo, editado pela Marta para a Companhia das Letras, mas foi tudo muito corrido, sem grandes contatos. Com as Novelas precisei falar muito com a Marta - e então descobrimos que formamos uma boa dupla. Faz uma tremenda diferença quando há profissionalismo, confiança mútua e bom humor. Pra completar esse quadro idílico, a Marta aceitou minha sugestão de que a preparação do texto fosse feita pela Silvia Massimini Felix, grande leitora de Cervantes, que ganhou meu respeito e afeto na preparação do Dom Quixote para a Penguin -Companhia. Enfim, duas amizades não são a menor parte nessa aventura.
A outra novidade foram as próprias Novelas. Eu as li quando tinha no máximo vinte anos e não me lembrava de nada, daí que tomei um susto ao me deparar com as mulheres de Cervantes. O que já era bom no Dom Quixote - as mulheres tratadas como indivíduos, não como gado, num mundo caótico, corrupto e violento onde os homens mandam e não pedem -, nas Novelas é levado ao extremo. Fiquei tão impressionado que acabei escrevendo um pequeno ensaio, "Muito além de Dulcineia - As mulheres no mundo de Cervantes", que entrou nos anexos dessa edição da Cosac Naify, que tem ainda textos de Maria Augusta da Costa Vieira, Silvia Massimini Felix e cartas de Freud.
As reflexões abaixo, sobre a tradução, são de uma pequena entrevista que dei a Welington Andrade, da revista Cult. Transcrevo-as aqui porque a maior parte não foi usada na matéria e porque as perguntas são muito boas.
P - Que armadilhas ou desafios a língua espanhola cervantina apresenta à tradução das Novelas Exemplares para o português?
R - A primeira armadilha - a mais óbvia e talvez a mais perigosa - é justamente a semelhança entre espanhol e português. É um convite à preguiça, a se traduzir tudo literalmente, o que leva aos enganos e estragos mais rasteiros. Em muitas traduções a gente enxerga o texto original sob o texto em português, como um filme com legendas. Acho isso muito incômodo, fico retraduzindo à medida que leio.
No caso de Cervantes, um dos grandes desafios é a linguagem. Muitas palavras ou expressões caíram em desuso, como "dar vozes" para dizer gritar, por exemplo. Se você optar por "dar vozes", vai ter de explicar em nota. Não é uma situação fácil: o que fazer quando o tempo atropelou a língua? Manter os arcaísmos que apenas especialistas entendem? Em geral busco termos que eram usuais no tempo de Cervantes, mas que continuam legíveis hoje. Jamais uso palavras modernas, ou que soem modernas por mais antigas que sejam, como esperto e voleio, por exemplo - esperto no Brasil virou sinônimo de estelionatário e voleio, comum nos dias de Cervantes, só deu as caras por aqui no século 20.  Agora, às vezes sou obrigado a manter arcaísmos, como no caso da "Novela da ilustre fregona". A palavra mais próxima, hoje, seria faxineira, mas "ilustre faxineira" ia soar muito esquisito, não? E apenas "criada" não dá a dimensão exata do trabalho de uma fregona.
Outro desafio danado é a fluência de Cervantes. Como achar o ritmo dele em português? Porque nem tudo o que funciona em espanhol funciona em português, daí que ser literal pode ser a pior saída. Sabe-se, a estrutura da frase em espanhol é diferente da nossa.
Veja bem, não se trata de facilitar ou baratear Cervantes para o leitor, como algumas pessoas pensam que tentei fazer com o Quixote. É um pouquinho mais complicado. É tentar botar Cervantes em português, português do Brasil, com nosso ritmo, nossa musicalidade. Ah, exclamam, é muito suspeito: assim ficou simples e gostoso de ler. Mas, pergunto, por que deveria ser chato e obscuro se Cervantes é fácil e divertido? É óbvio que houve algum problema se na passagem de uma língua para outra ele se tornou chato e obscuro.
Penso que se é para deixar Cervantes no meio do caminho, numa espécie de portunhol ou num português legível apenas no tempo de Camões, seria melhor publicar o original mesmo numa boa edição comentada. Mais de quatrocentos anos nos separam de Cervantes. Não se pode olhar com indiferença esse buraco. Ou dar por instransponível e ir ver tevê.
P - É possível ao leitor brasileiro contemporâneo compreender as sutilezas e o mecanismo do humor cervantino?
R - Claro, na essência o humor é exatamente o mesmo. Depois, boa parte do humor nas Novelas está na trama ou em cenas ou no tom, coisas que resistem mais ao tempo e aos tradutores. Mas há, claro, o humor em cima de jogos de palavras e de referências culturais. Aí só existem duas saídas: notas para explicar a piada ou a recriação da piada. Optei pela recriação, tentando nunca me afastar do clima original. Espero não ter sido muito infeliz.
Mas é bom notar que nem todas as Novelas tem humor. Na verdade, a maioria não tem. Há novelas trágicas, outras de aventura? Há muitos gêneros nesse livro. Cervantes gostava de experimentar, você sabe.
P - Para além do humor, há algum outro aspecto narrativo nas Novelas Exemplares que exige atenção redobrada do tradutor?
R - O amor. Talvez o amor seja mais complicado que o humor. A linguagem dos amantes se tornou quase toda ridícula com o tempo, daí que tem horas que parece que estamos fraudando as falas. Precisamos de muita atenção para não sair do ambiente da cena, para não destoar do clima. Quatrocentos anos nos separam, como disse. Então, parte do jogo é embarcar na máquina do tempo e curtir.
P - É possível tornar o humor de Cervantes contemporâneo ao nosso?
R - Não vejo a necessidade disso - o humor de Cervantes segue perfeitamente compreensível e risível hoje, com exceção de uma que outra referência cultural, como disse. Não é o caso de um Aristófanes, por exemplo. Mais distante no tempo, Aristófanes é quase todo ilegível, infelizmente perdeu muito de sua graça.
P - O que Cervantes tem ainda a dizer aos nossos dias?
R - Cervantes segue atual, sim. Ele entendia de gente, de seus anseios e medos profundos. Só isso já seria motivo suficiente para lê-lo. Mas, ao contrário de muitos autores antigos, ele escreveu de um modo que continua atraente para os leitores de hoje. Ele poderia ter dito a famosa frase de Stevenson: "Deleitar é servir; não é difícil instruir e entreter ao mesmo tempo, mas, em troca, é muito difícil conseguir plenamente o primeiro sem o segundo".

Autor
Ernani Ssó se define como ?o escritor que veio do frio?: nasceu em Bom Jesus, em 1953. Era agosto, nevava. Passou a infância ouvindo histórias e, aos 11 anos, leu seu primeiro livro sozinho:Robinson Crusoé. Em 1973, por querer ser escritor, entrou para a Faculdade de Jornalismo, que deixou um ano depois.  Em sua estréia, escreveu para O Quadrão (1974) e QI 14,(1975), publicações de humor. Foi várias vezes premiado. Desenvolve projetos literários para adultos e crianças.

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