Um flâneur em Lisboa

"Ó mágoa revisitada, Lisboa de outrora e de hoje! Nada me dais, nada me tirais, nada sois que eu me sinta". Alvaro de Campos. …

"Ó mágoa revisitada, Lisboa de outrora e de hoje!

Nada me dais, nada me tirais,

nada sois que eu me sinta".

Alvaro de Campos.

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Muitos anos antes dos livreiros descobrirem o filão editorial dos guias turísticos, um poeta português dedicou alguns anos de pesquisa e flânerie para escrever um livro sobre a cidade que tanto amava - o guia "Lisboa - o que o turista deve ver", publicado em 1925. Fernando Pessoa criou um roteiro para Lisboa, replicando o que o flâneur Charles Baudelaire havia feito em Paris.

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Curiosamente, existe uma forte ironia em um roteiro de viagem escrito por Fernando Pessoa, que detesta viajar. Salvo algumas idas e vindas a cidades vizinhas, deixou Portugal raras vezes, como quando morou com a família na África do Sul. Mas, mesmo assim, se permitia sonhar com as longas viagens por mar, como deixa transparecer em Ode Maritima:
"Ah, as viagens, as viagens de recreio, e as outras,

As viagens por mar, onde todos somos companheiros dos outros

Duma maneira especial, como se um mistério marítimo

Nos aproximasse as almas e nos tornasse um momento

Patriotas transitórios duma mesma pátria incerta,

Eternamente deslocando-se sobre a imensidade das águas,

Grandes hotéis do Infinito,

Oh transatlânticos meus!"
Mas, se Fernando Pessoa não foi um viajante frequente, manteve sempre uma intensa e profunda relação com a cidade de Lisboa, que ele descreveria apaixonadamente no enigmático "O Livro do Desassossego". Publicado em 1982, quase 50 anos depois de sua morte, reúne poemas avulsos de seu espólio:
"Sou qualquer coisa que fui.

Não me encontro onde me sinto e se me procuro,

não sei quem é que me procura.

Um tédio a tudo amolece-me.

Sinto-me expulso da minha alma."
Quem assina o Livro é Bernardo Soares, um dos menos conhecidos heterônimos do poeta. Que, não por acaso, é apresentado como guarda-livros de escritório da Baixa - onde o próprio Fernando Pessoa trabalhou como tradutor em uma editora. Ele fala de um encontro numa "casa de pasto" da Baixa. Na verdade, Bernardo Soares é uma das máscaras que Fernando Pessoa usa para compor um diário pessoal, onde desfilam inquietação, tédio, angústia e o amor pelas ruas, ladeiras e casarões de Lisboa. E deixa seu alter ego declarar:
"Eu adoro a luz destas praças solitárias,

intercaladas entre as ruas com pouco tráfego,

onde meu passado é tudo o que não consegui ser."

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Existe uma fascinante semelhança entre as flâneries de Fernando Pessoa e de Charles Baudelaire. Em momentos diferentes, os dois poetas assistem angustiados a transição de Lisboa e Paris para o modernismo. O flâneur de Baudelaire se sente fora de casa. O do poeta português se sente permanentemente caseiro. Mas ambos, à sua maneira, louvam as "praças solitárias" de Lisboa e os "mauvais lieux" de Paris, por onde Baudelaire se deixa levar em andanças erráticas por labirintos de velhos quartiers.
Para Baudelaire, o ato de deambular como um vagabundo errante era um exercício de contemplação artística. Ele observa as mudanças que o modernismo imprime na paisagem parisiense:
"Paris muda!

Mas nada em minha nostalgia mudou!

Novos palácios, andaimes, lajedos,

Velhos subúrbios, tudo em mim e? alegoria,

E essas lembranças pesam mais do que rochedos".

Enquanto isto, Fernando Pessoa empreende pelas ruas lisboetas uma viagem ao passado, dizendo de sua nostalgia de flâneur / navegante:

"Vou para o meio de Lisboa.

Não trago nada e não acharei nada.

Tenho o cansaço antecipado do que não acharei,

E a saudade que sinto não é nem no passado nem no futuro.

Deixo escrita neste livro a imagem do meu desígnio morto:

Fui, como ervas, e não me arrancaram".

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Autor
José Antônio Moraes de Oliveira é formado em Jornalismo e Filosofia e tem passagens pelo Jornal A Hora, Jornal do Comércio e Correio do Povo. Trocou o Jornalismo pela Publicidade para produzir anúncios na MPM Propaganda para Ipiranga de Petróleo, Lojas Renner, Embratur e American Airlines. Foi também diretor de Comunicação do Grupo Iochpe e cofundador do CENP, que estabeleceu normas-padrão para as agências de Publicidade. Escreveu o livro 'Entre Dois Verões', com crônicas sobre sua infância e adolescência na fazenda dos avós e na Porto Alegre dos velhos tempos. E-mail para contato: [email protected]

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