O Natal sequestrado

"Não somos enganados pelos outros; nós próprios nos enganamos". Johann Wolfgang von Goethe. Era dezembro de 1921 e a Alemanha se preparava para celebrar …

"Não somos enganados pelos outros;

nós próprios nos enganamos".

Johann Wolfgang von Goethe.
Era dezembro de 1921 e a Alemanha se preparava para celebrar o Natal. Em uma grande cervejaria de Munich, o novo líder do Partido Nacional Socialista, Adolph Hitler, inicia seu discurso diante de 4 mil militantes. Eles aplaudem em delírio o anúncio de uma cruzada para salvar a Alemanha da humilhação imposta em 1918. Os aplausos se tornam ensurdecedores quando Herr Hitler acusa o judaísmo de "haver crucificado covardemente o salvador do mundo". O orador se inflama e promete não descansar até que todos os judeus da Alemanha sejam castigados por seu crime.
Ao final, a multidão entoa músicas natalinas e hinos nacionalistas, marchando ao redor de um grande pinheiro, iluminado com velas de Natal. Começava o sequestro do Natal.

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Ao longo das décadas de 1920 e 1930, as celebrações da maior festa da Cristandade foram habilmente manipuladas para servir de veículo para a propaganda nacional-socialista. A partir de 1933, quando o nazismo assume o poder na Alemanha, a simbologia natalina e até a figura de São Nicolau desaparecem dos espetáculos públicos, cedendo lugar à mitologia da antiga Germânia. Cedo, a ação do Ministério da Propaganda alcança as casas alemãs, que passam a adotar temas pagãos nas festas natalinas.
Enquanto isto, músicos, cineastas e escritores são convocados para apoiarem a volta aos rituais nórdicos, como a festa do solstício de Inverno, como era celebrada antes do advento do cristianismo. Mesmo a cerimônia do acendimento das velas, às vésperas de Natal, se transforma no "Retorno das Luzes", o rito pagão que assinalava a noite mais longa do ano.
Os propagandistas do Terceiro Reich identificaram influências e origens judaicas no Natal cristão, olhando com desconfiança a subsequente resistência do clero à "germanização" da efeméride.
Assim, aos poucos, as lendas e tradições das tribos do Norte passam a dividir espaço com as celebrações do nascimento de Cristo.

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Logo, os alemães passam a adotar um Natal no figurino da pureza ariana. Imagens da mídia mostram famílias louras e de olhos azuis ao redor das árvores de Natal, decoradas com bolas coloridas, adornadas com a cruz suástica. A capa de um catálogo de Natal de 1935 exibe um aviso que a loja passara ao controle de negociantes 100% arianos. A mensagem era simples e direta - os "não-arianos" estavam sendo excluídos da festa. E não muito depois, também da vida civil.
A manipulação ideológica do estado chega aos menores detalhes, com a proverbial eficiência germânica - estimulando as donas de casa a preparar bolos com símbolos pagãos de fertilidade e bordar toalhas e guardanapos decoradas com a imagem de Odin e outras divindades nórdicas. Por fim, a "germanização" do Natal substitui a Estrela de Belém - considerada símbolo judaico - pelo "Fogo dos Demônios da Neve", uma popular lenda viking.
Ao longo da História, sempre houve conflitos entre a pregação ideológica e as tradições religiosas. Na Alemanha de 30 e 40 não foi diferente - o clero e líderes religiosos tentaram resistir ao Natal sem Cristo, mas não havia voz capaz de alterar a ação do Ministério da Propaganda. Mesmo assim, nas igrejas católicas e protestantes, hinos arianos eram muitas vezes postos de lado, em favor das tradicionais canções de Natal.

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Não se sabe quantos alemães aderiram ao Natal nazificado, mas se sabe que a polícia secreta era acionada para intimar os que ignoravam as diretrizes oficiais. Documentos oficiais relatam a preocupação em se eliminar a "popularidade das práticas judias do Natal". No entanto, à medida que as derrotas militares alemãs se sucedem e as tropas aliadas avançam pela Europa, a festa da Natividade volta à Alemanha.
Existem comoventes relatos de sobreviventes sobre o retorno às celebrações tradicionais. No Natal de 1944, o último que antecedeu o fim da guerra, em Köln, Dresden e Düsseldorf, canções natalinas eram entoadas por grupos de pessoas, reunidas ao redor de velas acesas sobre os escombros de velhas catedrais. A fé religiosa vencera, mais uma vez, a tirania.

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Autor
José Antônio Moraes de Oliveira é formado em Jornalismo e Filosofia e tem passagens pelo Jornal A Hora, Jornal do Comércio e Correio do Povo. Trocou o Jornalismo pela Publicidade para produzir anúncios na MPM Propaganda para Ipiranga de Petróleo, Lojas Renner, Embratur e American Airlines. Foi também diretor de Comunicação do Grupo Iochpe e cofundador do CENP, que estabeleceu normas-padrão para as agências de Publicidade. Escreveu o livro 'Entre Dois Verões', com crônicas sobre sua infância e adolescência na fazenda dos avós e na Porto Alegre dos velhos tempos. E-mail para contato: [email protected]

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