Armadilhas do tempo

"O passado é tudo que eu não fui". Fernando Pessoa. No momento em que desceu do táxi, a rua lhe pareceu exatamente igual a …


"O passado é tudo que eu não fui".
Fernando Pessoa.
No momento em que desceu do táxi, a rua lhe pareceu exatamente igual a qualquer outra. Quase por desistir, quando percebeu que esparsas lembranças começavam a tomar forma. Caminhou até a esquina, procurando um sinal que mostrasse que estava no lugar certo. Achou uma placa - daquelas esmaltadas em azul e branco que havia em cada esquina. Era mesmo a rua que procurava - e, com sorte, o quarteirão onde passara parte de sua infância. Subiu a ladeira, altos prédios dos dois lados, um idêntico ao outro, uma monotonia de desanimar. Procurou pelos velhos jacarandás, mas viu apenas gramados acanhados, com grades e guaritas de vidros escurecidos, ocultando porteiros sonolentos. Seria mesmo aquela a sua rua?
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"Caminhamos entre a inconsistência de um presente, que desliza na superfície das coisas e o charme do passado, do qual nos separamos com relutância (?)".*
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Eram outros tempos, suspirou, outras gentes. Inútil perguntar pelos velhos sobrados, de janelas amarelas ou azuis, que se alinhavam até o alto da ladeira. E por aqueles jardins, carregados de magnólias e jasmins, que enchiam o ar da tarde com seu perfume adocicado?
Esta era a hora em que as janelas se abriam de par em par e mulheres se debruçavam nos peitoris. Esperavam pelos maridos que desciam a ladeira às 5 horas, quando soava a sirene da fábrica do lado de lá da avenida. E enquanto isso, ficavam pelos peitoris, trocando conversa e mantendo um olho vigilante nas crianças que pulavam sapata. E quase que se podia ouvir as conversas, cortadas, de tempos em tempos, pelo grito:
"Cuidado com os autos!".
Um aviso repetido sempre, mesmo que não houvesse auto algum nas ruas de paralelepípedos. Aqueles dias e noites possuíam sons e ruídos próprios. O apito do guarda-noturno na madrugada, o tlaque-tlaque da carrocinha do leiteiro, o perfume de pão-de-ló esfriando na janela da cozinha? Havia um professor no ginásio - qual era mesmo o nome? - que dizia que a memória guarda mais zelosamente cheiros e sons do que rostos e nomes.
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"As lembranças e as experiências privilegiadas da memória afetiva fornecem a matéria de uma verdadeira vida, libertada das contingências e integrada em sua pura essência (?)".**
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As lembranças agora chegavam com força - o tal professor sabia das coisas. Não se via um único pé de magnólia na rua, mas se podia sentir seu doce perfume. Chegou ao topo da ladeira. Do outro lado, no lugar da antiga fábrica, extensos conjuntos de casas populares, todas da mesma cor. A chaminé há muito fora derrubada e, com ela, as cornetas da sirene que marcava as 8 e as 5 da tarde, de segunda à sexta. Silenciava aos sábados e domingos, deixando espaço para conversas na calçada e gritos das crianças. Apurou o ouvido - não ouviu nenhum som antigo. Também não viu nenhum dos velhos colegas subindo a avenida, apenas carros estacionados. Daquele tempo, eram poucos e cobiçados - o Buick preto do "seu" Günther e o Ford V8 amarelo dos Andreattas. Eles também, desde muito, desmanchados no tempo.
Mas - pensou - o que viera fazer ali? Não encontrara suas antigas referências e os vestígios da memória estavam mais distantes do que nunca.
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"O passado é assim. É trabalho perdido procurar evocá-lo, todos os esforços de nossa inteligência se mostram inúteis. Ele está oculto, fora do domínio e do alcance em algum objeto material que não sabemos qual seja e que, somente por acaso, o encontraremos antes de morrer, ou que não o encontraremos nunca (?)".***
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Dobrou uma esquina e mais outra. Então, em um canto da rua tudo passou a ser familiar. Da primeira casa, com as venezianas abertas, era de onde chegava um cheiro de peixe frito. Mais adiante, no casarão amarelo, morava a viúva do oficial da mercante, que teve o navio torpedeado. Como se chamava o pastor alemão que tinha o nome do cargueiro afundado - Itajuba ou Itabira?
Na casa branca da esquina, em letras verdes, se lia acima da porta, "Armazém Vasco". Seu dono era o português Manuel, que vendia fiado e fraudava na balança. Até que um dia, caiu da escada e quebrou perna e braço. Quem o socorreu foi a judia Bertha, do mercadinho, que vendia mil-folhas amanhecidos, pela metade do preço.
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"O passado é perigoso e traiçoeiro. Você pode visitá-lo muitas vezes, explorar seus caminhos e segredos, mas sempre haverá afiadas lâminas que o vão ferir".****
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Citações:
*Raymond, Michel, (1967) "Marcel Proust et les métamorphoses du roman".
**Beckett, Samuel, (1986) "Proust".
***Proust, Marcel, (1956) "O Caminho de Swann".
****Bradbury, Ray, (1071) "O Homem Ilustrado".

Autor
José Antônio Moraes de Oliveira é formado em Jornalismo e Filosofia e tem passagens pelo Jornal A Hora, Jornal do Comércio e Correio do Povo. Trocou o Jornalismo pela Publicidade para produzir anúncios na MPM Propaganda para Ipiranga de Petróleo, Lojas Renner, Embratur e American Airlines. Foi também diretor de Comunicação do Grupo Iochpe e cofundador do CENP, que estabeleceu normas-padrão para as agências de Publicidade. Escreveu o livro 'Entre Dois Verões', com crônicas sobre sua infância e adolescência na fazenda dos avós e na Porto Alegre dos velhos tempos. E-mail para contato: [email protected]

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