Flávia Moraes: Ela é um dínamo

Com raízes na Publicidade, foi no Cinema que ela se encontrou

Nas palavras do dicionário Oxford, o dínamo é uma "máquina que transforma energia dinâmica em elétrica". Essa definição encapsula não apenas um mero processo físico, mas também uma metáfora poderosa para Flávia Moraes. Assim como um dínamo, a diretora e cineasta canaliza a energia do mundo ao seu redor, convertendo-a em histórias que buscam iluminar telas e mentes.

Foi nas palavras de Luis Fernando Verissimo que ela recebeu essa definição. 'Flávia é um dínamo' foi como o escritor escolheu encabeçar uma carta de recomendação que escreveu para a cineasta. Até hoje, ela guarda com carinho o escrito: "Muito além de um elogio muito carinhoso, foi algo que me ajudou a abrir portas".

Apesar de ter raízes na Publicidade, com mais de três mil comerciais dirigidos para agências de todo Brasil, foi no Cinema que Flávia se encontrou, embora tardiamente. "A sensação que tenho é que passei muito tempo anônima, fazendo comerciais, e agora estou conseguindo chegar a um reconhecimento maior e levar para as pessoas esse trabalho inspirador e transformador", explica.

O convencional não a convence

Nascida em 25 de abril de 1959, em Porto Alegre, é filha do jornalista e publicitário José Antônio Moraes de Oliveira - colunista de Coletiva.net há 15 anos - e da professora de história Zélia Mello de Oliveira. Apesar de ser a irmã mais velha de Alexandre e José Antônio, em espírito ela se considera "mais jovem" que os dois. "Não tenho absolutamente nada a ver com meus irmãos e até brinco com meu pai se ele desconfia de algo, pois é impossível que pessoas criadas na mesma casa possam ser tão diferentes", diverte-se.

Disruptiva desde cedo, ela conta que foi uma criança "empreendedora". Habituada a engraxar os sapatos do avô por uns trocados, achou que seria uma boa ideia levar o ofício aos transeuntes da Praça da Matriz. O trabalho durou até ser encontrada pelo pai, desesperado, que a levou para casa: "Fui muito moleque de rua". Outra peripécia que realizou foi quando se aproveitou das características andróginas para entrar no campeonato de futebol Dente de Leite - exclusivo para meninos. "Até que me descobriram e me mandaram para casa", lamenta.

O androgenismo que a permitiu se infiltrar na disputa acompanha ainda uma outra característica de Flávia: a identidade não-binária. "É uma coisa muito natural desde criança. Acredito que você precisa ser fiel aos seus impulsos e às suas verdades", defende. A diretora pondera que se limitar por padrões de comportamentos tidos como masculinos e femininos é uma limitação: "Tenho lados extremamente femininos e outros tais quais masculinos e, por sorte, sou filha de quem sou, então tive o acolhimento necessário".

A cineasta também prefere se colocar "fora da caixa" no que diz respeito aos relacionamentos. Após já ter passado por todos os estados civis disponíveis - casada, viúva, divorciada e desquitada -, acredita que é o amor que une as pessoas e não um "relacionamento ditado pelas expectativas sociais". "Não consigo me colocar em rótulos, nada que é muito convencional me convence", pontua. Hoje, após passarem juntos pelo isolamento social, o border collie Elliot é sua companhia. "Acho que os animais são deuses, gosto de prestar atenção neles", explica.

Cinema no DNA

Esse carinho pelos animais é retratado no mais recente lançamento da carreira: o filme 'Visions in The Dark', no qual explora a relação entre humanos e cavalos por meio de um método não-violento de treinamento. A apresentação da produção na Cinemateca Capitólio ainda no ano passado foi um momento muito feliz para Flávia, que entende que o povo gaúcho, apesar de adorar os cavalos, é "violentamente ignorante" no trato com esses animais. "Foi muito emocionante levar meu filme para a minha cidade, em uma casa lotada, aplaudindo de pé, e ter na plateia meu pai, que foi quem despertou o meu amor pelo Cinema", salienta.

Esse gosto foi cultivado desde muito cedo, quando acompanhava o trabalho de J. A. Moeaes para a rádio Universidade. "Lembro-me de ir dormir ouvindo o barulho da máquina de escrever, com meu pai escrevendo sobre Cinema", conta. A matinê dos sábados também era um ritual: "Íamos no Cine Vitória, no Capitólio e no Cacique". Por conta disso, não houve um processo decisório para trilhar o rumo do Audiovisual. 

Assim como o despertar prematuro do amor pela área, Flávia colocou a mão na massa cedo também. Aos 14 anos já era cartunista na Folha da Manhã, trabalhando junto de Edgar Vasques e Fraga. O trabalho de animação foi o próximo passo, que logo a levou às produções reais. "Quando me dei conta, já estava fazendo comerciais", afirma. Aos 20 anos já era responsável por dirigir as peças publicitárias na Lynxfilm, mas a busca por se aperfeiçoar a levou até Londres, no início da década de 80, onde concluiu uma formação em Filmmaking na International Film School

No retorno ao Brasil, trabalhou com agências como DPZ e Escala, no Rio Grande do Sul, e 5.6, EB, Espiral Filmes e Globotech, em São Paulo, antes de inaugurar a própria produtora, a Film Planet, em 1989. "A Planet explodiu. Tínhamos operações em Buenos Aires, em Lisboa, em Los Angeles, no Rio de Janeiro e em São Paulo", lembra. Por mais de uma década, Flávia se viu em uma rotina de viagens e trato com clientes nacionais e internacionais na posição tanto de diretora quanto de CEO. "Até que chegou um momento que eu não aguentava mais", conta.

Algoz da estagnação

Já com 50 anos, Flávia passou por uma experiência no set que a faria repensar no que estava vivendo: o maquinista que a acompanhava desde que chegou em São Paulo sofreu um ataque do coração. Ao chegar em casa, a cineasta decidiu botar no papel os comerciais que havia feito e chegou a uma conclusão desanimadora: "Dos três mil comerciais que fiz, eu não lembrava de 100".

Desfazer a estrutura que ela mesma havia criado na Planet não foi fáci, devido à desavença com os sócios, que queriam manter a empresa. "Era rentável, com bons contratos e todo mundo estava ganhando dinheiro", relata. A venda da produtora foi oficializada em 2012, seguida por um período de descanso e estudo nos Estados Unidos. "Sou grata e aprendi muito com a Propaganda, mas chega um momento em que você vira uma máquina de fazer comerciais e aquilo não tem mais suas ideias, sua arte ou seu pensamento", pontua.

Um ano mais tarde, em 2013, de volta ao Estado, Flávia recebeu um convite para idealizar a OCTO, TV experimental do Grupo RBS, que surgiu para substituir a TVCom e buscar um novo caminho para a produção e exibição de conteúdo. A falha no experimento até hoje rende comentários nas redes sociais da diretora, que já chegou a ser chamada de "algoz da TVCom". "A verdade é que a TV já havia terminado há muito tempo e ninguém se dava conta", pontua.

Apesar do projeto não ter avançado, Flávia avalia que o experimento foi altamente satisfatório para os que participaram dele. "Acreditávamos que aquilo poderia ajudar o Rio Grande do Sul e Porto Alegre a mudarem, e acabou que quem mudou fomos nós", explica. Novamente, os EUA voltaram a ser um refúgio para a cineasta, que começou a fazer o que já deveria ter feito antes: botar em prática projetos autorais.

Mão na massa

Com um currículo expressivo de comerciais, filmes, documentários, séries de TV e shows, além de prêmios nos festivais de Cannes, Clio, London Awards e The New York Film Festival, hoje, a rotina de Flávia se molda conforme o projeto que está entregando. Após coletar quase 40 prêmios em festivais com 'Visions in the Dark', agora ela se dedica a edição de um documentário que celebra os 80 anos e marca a despedida dos palcos de Milton Nascimento.

Como uma das primeiras diretoras brasileiras a integrar o Directors Guild of America (DGA), também é sua missão avaliar produções para premiações, incluindo o Oscar. Porém, salvo em função deste trabalho, por uma questão de tempo, Flávia tem preferido selecionar melhor o que consome: "Procuro filmes com uma forma inteligente de fazer Cinema, que me toquem, inspirem e provoquem".

Essa busca também está ligada ao próximo destino, a Espanha. "Os EUA produzem muitos conteúdos de escapismo e acho que, mais do que nunca, a gente precisa pensar. Minha ida para a Europa é na busca de voltar a raciocinar", explica. Como arquiteta amadora, comprando e reformando ambientes, o objetivo de Flávia é recuperar uma casa medieval de pedra na costa do Mediterrâneo. Isso resultará na despedida do lar onde mora em Los Angeles, desenhado pelo modernista Richard Neutra. "Cinema é criar histórias e espaços mentais, e Arquitetura é criar ambientes físicos para que as pessoas vivam histórias. É uma ligação interessante", pondera.

Free yourself and let others be free

Nômade, Flávia afirma que, apesar do sol em Touro organizar a casa, o ascendente em Sagitário pede o movimento. "Acho que conhecer lugares, culturas e jeitos de falar, pensar e viver, mantém você vivo", defende. Apesar de aproveitar alguns momentos por ano no seu santuário em Gramado, o 'Boca do Dragão', essa mobilidade sagitariana não a trará de volta ao Estado por enquanto. "É um refúgio onde me sinto muito bem e que devagarinho estou construindo. Quem sabe um dia, quando não houver mais sombras de Lula e nem Bolsonaro, eu ainda volto", pontua.

Sobre o futuro, Flávia acredita que estará na Espanha ou, provavelmente, saindo do país europeu, indo para outro lugar, com uma nova casa para reformar. "Acho que o grande desejo para o futuro é envelhecer bem, tranquila, com saúde mental e física, e continuar fazendo o que eu amo", afirma. Apesar de se sentir realizada, a diretora espera entregar mais filmes que impactem e inspirem as pessoas. "Hoje, mais difícil do que fazer um filme, é distribuir ele. E eu espero que, com o documentário do Milton, eu tenha um pouco mais de reconhecimento para ter mais força para novos projetos", comenta.

Com uma vida de realizações, Flávia define a si mesma como uma realizadora. "Desde a caixa de engraxate até as produções cinematográficas independentes, as casas que desenhei, as empresas que idealizei", enumera. Carregando o budismo tibetano como filosofia, a cineasta acredita fortemente na lei do retorno e defende a liberdade de todos poderem ser quem são. Para ela, não basta apenas querer ser livre, mas impor restrições aos demais. Ou seja, nas suas próprias palavras: "Free yourself and let others be free".

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