O corpo e a alma do jogo

Por Renato Mendonça, para Coletiva.net

A seguir, uma série de reflexões que anotei imediatamente após assistir a 'Derrota', direção de Camila Bauer e atuação de Liane Venturella para texto do grego Dimitris Dimitriádis. Derrota segue em cartaz nos dias 25 e 26 de junho, às 22h, e também em 29 de junho, às 23h59, no YouTube. Ingresso à venda no site entreatosdivulga. 

Primeiro, se no debate que se seguiu à estreia de 'A Vó da Menina' [atração do Ponto de Teatro do Instituto Ling, codirigida por Camila e Bruno Gularte Barreto, em cartaz em maio de 2021] discutiu-se o formato daquele espetáculo - teatro, vídeo, híbrido... - 'Derrota', para mim, trata-se indiscutivelmente de teatro alojado na plataforma vídeo. E digo isso porque os pouco mais de 30 minutos do espetáculo encerram alguns dos princípios mais caros da arte cênica presencial, ao menos para mim: a autonomia do espectador, o tempo compartilhado, a força do corpo. 

A opção de evitar qualquer efeito de edição ou de imagem, de propor um plano-sequência (para usar um termo de outra área...) e de evitar saltos de tempo se mostra acertada. Evitar a sucessão de tomadas e ângulos, mesmo admitindo-se que atenda à narrativa da história, em que a personagem parece estar falando com alguém pelo celular, devolve ao espectador a autonomia de decidir o que vai olhar, de escolher o "enquadramento" que quiser. Nesse ponto, a ausência de trilha sonora também representa uma evidência de que a direção abre mão de qualquer recurso de "direcionamento" emocional externo, jogando à atriz e ao texto a responsabilidade de conduzir uma 'Derrota' vitoriosa.

Aí chegamos à atriz e ao texto. O que dizer? De Liane, que ela acumula mais que a capacidade técnica e o physique du rôle - ela tem a maturidade para dar esse texto. É quando vejo pelo menos uma vantagem de o teatro migrar para a plataforma digital - facilitar o reconhecimento em outros lugares dos nossos talentos. Quanto ao texto, li uma entrevista do Dimítris Dimitriádis em que ele diz algo como: "A vida é impiedosa. É muito mais cruel do que a gente pensa".

Essa maldade intrínseca do viver está em cena, mas a desilusão pega carona e senta na janela. "A vida é uma longa crença", diz a personagem, admitindo que ficaram para trás os tempos em que estava dentro da realidade e a queria transformar. Como ótimo texto que se preza, aplica-se ao individual e ao coletivo, ao existencial e ao político.

Mas é um momento de se rasgar o véu de Maya, de se parar de buscar desculpas para a vida vivendo. "Quem não compreende faz discurso. Quem compreende, fala". O rosto, a voz, os cabelos e os gestos de Liane, amalgamados num tom equilibrado, que justifica todos os elogios à direção, garantem credibilidade. A desolada personagem conquistou a alteridade, descobriu seu lugar no mundo fora do mundo. Ela, de alguma forma, é Deus. É Deus porque sabe distinguir o mundo do sono, o mundo da realidade, e o mundo que ela vai inventar quando finalmente conquista a iniciativa de se matar.

Claro que qualquer obra (especialmente as boas) merece várias interpretações. Fui pela de um suicídio assistido, sugerido por a personagem pegar o celular na mão quando deita, e este cai no chão quando ela... dorme (sabe-se lá por quanto tempo...). Ela se foi para o reino do sono, ou Pasárgada - isso é derrota? É esse ponto o mais perturbador para mim - ela foi derrotada quando estava dentro da realidade. Quando saiu, ergueu a taça. Se isso implica mergulhar no nada - bueno, não se pode ter tudo.

Não deixa de ser triste, entretanto, especialmente nos tempos que vivemos, que um dano colateral do texto seja colocar no menu a desesperança de agir sobre a realidade. Luta de classes não é a classe de luta que se desenvolve aqui - a personagem chegou no seu limite (uma das questões fundamentais - o que fazemos quando estamos no limite?) e decide se exilar da terra da realidade. Vai para a terra do sono, para o coração da terra do sono, claro, porque espera que essa outra nação respeite a emoção.

Próximo do final, surgiu-me uma referência inescapável. Falando de sono e de morte, de decisões no limite, contemplando a personagem deitada na cama esperando se desprender, lembrei imediatamente de Hamlet, especialmente de Ofélia. Suicídio ou acidente, Ofélia vai ao encontro do reino do Sono santificada, purificada na sua permanente disposição de fazer o certo. Hamlet teve medo, Ofélia não se sabe, mas a personagem de 'Derrota' parece embarcar na barca de Caronte, se não sorrindo, decidida. A longa confissão da personagem soa como a canção de morte que a personagem shakespeariana teria entoado antes de afogar-se. Destarte, o reino do Sono parece um lugar onde se pode respirar com calma, enquanto o reino da realidade é a terra do afogar-se no esforço da transformação, no compromisso com o coletivo, na corrida contra o tempo, na luta contra o movimento centrípeto de olharmos para nós mesmos.

Atriz, texto e direção de 'Derrota' concorrem para que essas descobertas e provocações se alimentem. Usando uma expressão que aparece no espetáculo, há diferença entre estarmos sós e estarmos sozinhos. Com a arte, nunca estamos sozinhos. Por mais que o mundo da realidade nos derrote.

Renato Mendonça é crítico e jornalista.

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