O leitor do tempo

"Quando eu sonhava, era assim Que nos meus sonhos a via; Apenas eu despertava, Essa imagem fugidia Que nunca pude alcançar."        (Almeida …

ja2"Quando eu sonhava, era assim

Que nos meus sonhos a via;

Apenas eu despertava,

Essa imagem fugidia

Que nunca pude alcançar."

 

     (Almeida Garrett)

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Os proustianos afirmam que "Em Busca do Tempo Perdido" é o fruto da obsessão do autor com o que ele chamava de "a marcha destruidora do tempo". Também sabemos que Marcel Proust se antecipou aos escritores da época ao mergulhar fundo no tema Tempo e Memória. Assim, o enredo da obra - o fio condutor que encontramos na novela moderna -, tem aqui um papel secundário.   A história, propriamente dita, pode ser resumida em poucas páginas e apenas interessa ao leitor que ainda não foi envolvido pelo encantamento da "recherche du temps".

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Marcel Proust escrevia com uma dedicação compulsiva, quase sufocante. Segundo consta, as frases longas e os períodos extensos correspondem aos espasmos de alguém que procura ganhar fôlego, antes de continuar o caminho (não por acaso, Proust sofria de asma quando criança). Seu estilo foi arduamente conquistado, obra de um ourives trabalhando minuciosamente o material que conhecia a fundo - a língua francesa.
Apaixonado pela arquitetura medieval, ele construiu Em Busca do Tempo Perdido como uma catedral gótica, usando rebuscados recursos de linguagem e de memória. A característica dominante da igreja gótica é a simetria que se repete nos detalhes. Assim, cada altar tem um outro altar como espelho, cada transepto, um segundo transepto, cada ogiva, outra ogiva, e a cada vitral corresponde outro vitral. E, à medida que a catedral se eleva, as partes opostas convergem mantendo a simetria, até se unirem no alto da torre. Assim, peça por peça, Proust ergue sua catedral de palavras, cenas e personagens com um estilo sempre simétrico - onde o fim do ciclo remete ao começo.
Na verdade, o que os proustianos apontam como transcendente na obra não é a narrativa, mas a análise psicológica, as conexões emocionais entre os personagens e a permanente obstinação do escritor em resgatar a Memória e desafiar o Tempo - "que tudo arrasta e tudo destrói".

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Quando o leitor concluir Em Busca do Tempo Perdido, perceberá que não leu um retrato gótico da burguesia da França no final do século XIX, nem um estudo do Amor e dos sentimentos adjacentes, mas a crônica da permanente luta do espírito criador contra o tempo. Sem um verdadeiro ponto de referência na vida real, onde possamos nos prender, Marcel Proust nos adverte que apenas a literatura pode cumprir este papel. Em No Caminho de Swann, ele confirmaria:

"O trabalho do escritor é um instrumento que permite ao leitor discernir, independente do livro, o que ele talvez nunca consiga ver em si mesmo. Na verdade, cada leitor, enquanto lê, se transforma em leitor de si mesmo."

Autor
José Antônio Moraes de Oliveira é formado em Jornalismo e Filosofia e tem passagens pelo Jornal A Hora, Jornal do Comércio e Correio do Povo. Trocou o Jornalismo pela Publicidade para produzir anúncios na MPM Propaganda para Ipiranga de Petróleo, Lojas Renner, Embratur e American Airlines. Foi também diretor de Comunicação do Grupo Iochpe e cofundador do CENP, que estabeleceu normas-padrão para as agências de Publicidade. Escreveu o livro 'Entre Dois Verões', com crônicas sobre sua infância e adolescência na fazenda dos avós e na Porto Alegre dos velhos tempos. E-mail para contato: [email protected]

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