O manual prático do escritor

Quantos conselhos sérios pode se dar a um candidato a escritor? Um, segundo Dalton Trevisan. Aos jovens, ele recomenda: tenham talento. Quer dizer, nenhum, …

Quantos conselhos sérios pode se dar a um candidato a escritor? Um, segundo Dalton Trevisan. Aos jovens, ele recomenda: tenham talento. Quer dizer, nenhum, porque isso é o mesmo que recomendar que tenham olhos azuis e um metro e oitenta. Trevisan, como os bogartianos, acha que ninguém salva ninguém, ninguém educa ninguém e todos se perdem sozinhos.
Eu sou bogartiano até no sorriso torto, mas hoje acordei uma manteiga derretida e didático ainda por cima. Depois de umas contas, cheguei a três conselhos pra valer: seja amigo do editor, seja amigo dos críticos e escreva no mínimo em espaço dois, para que as correções não fiquem apertadas. Vamos levar o pragmatismo até seu lógico ou cínico fim? Esqueça o espaço dois, ou você ainda não usa computador? Depois, se você for amigo do editor e dos críticos, não precisa se preocupar com correção nenhuma.
Caso não consiga ser amigo de nenhum editor, tente a mulher, a irmã ou a mãe dele. Não deu? Ainda resta uma alternativa: você mesmo ser editor. Álvaro Pacheco, por exemplo, publicou toda a poesia de Álvaro Pacheco. Melhor: deve ter arrumado um monte de amigos.
Quanto à amizade dos críticos é mais problemático. Não é que eles sejam imunes ao afeto. O difícil é localizar um crítico. É preciso muita argúcia, muita paciência. Muitos escritores morrem antes de encontrar um crítico. Em caso de desespero, contrate um detetive. Bechara Jalk continua na ativa.
Mas para que um crítico? Sim, você deseja ser compreendido. É. Isso é humano. O perigo é que o crítico o compreenda mesmo. Muitos críticos morrem antes de encontrar um escritor.
Esqueça os críticos. Procure os jornalistas. Eles trabalham demais e ganham de menos, como quase todo mundo. Você entrega um bom release e eles copiam, economizando tempo e inimigos. Assim todos ficam satisfeitos.
Outra coisa: nunca cobre o que o editor deve a você. Afinal, não é um amigo do peito? Fica chato andar cobrando os amigos.
Mas se você é desses que acham que apenas prestígio não enche barriga, só há uma coisa a fazer: tornar o editor refém da sua amizade. Isso é fácil de conseguir: escreva um best-seller atrás do outro.
Não precisa se alarmar. Escrever um best-seller atrás do outro também é fácil. Veja: primeiro, você escreve um best-seller. Em seguida, outro. Depois, mais outro e assim su-ces-si-va-men-te. Pegou? Georges Simenon, que escrevia um best-seller em dez ou doze dias - uma vez em três e uma em apenas um dia -, nunca teve problemas com seus editores. Podia inclusive dizer na cara deles o que pensava, ou mandar se dedicarem à agricultura, como plantar batatas.
Eu podia continuar por duas ou três páginas. Como se viu, meu talento para o magistério é um fato. Mas paro por um motivo simples: no fundo, acho que só há um conselho verdadeiro a ser dado aos candidatos à literatura: desistam! Isso mesmo, seus trouxas! Desistam! Vão encher outro!
Tenho até nojo quando vejo um escritor se queixando de falta de estímulo, de compreensão. Há estímulo demais, há compreensão demais. Oitenta por cento da humanidade é de tias. É preciso dar um basta em tanto estímulo, tanta compreensão, tantos tapinhas no ombro, tantas tias de todos os sexos! Não há cidade que não tenha no mínimo dez nulidades com cem incensadores atrás.
Literatura é um inferno, meu nego. É um negócio solitário. Qualquer seboso que aparece na televisão pega muito mais mulher do que qualquer escritor. Qualquer imbecil que rimar bucha com Xuxa, ou pirão com trovão, grava um disco e ganha mais. Pra completar, escrever arrebenta com a coluna da gente. É pouco? Sabe quantos candidatos à literatura surgem toda semana em todo o mundo? Milhares! Bota milhares nisso. Desses, uma meia dúzia dará sorte. Se você pensa que será um deles, me desculpe, mas você não pensa. Vá jogar na loteria.
Agora, se depois de tudo, você ainda não conseguiu parar de escrever, eu me rendo. Se a literatura encarnou em você como uma sarna braba, como rabicho de mulher da vida, não há nada a fazer. Desista de lutar contra. Tente se administrar da melhor forma possível. Vai ver, é uma coisa fundamental para você. Pode não ser para mais ninguém, mas e daí? Em meio ao cenário de terror, você até descobrirá que a literatura pode ser um prazer, uma alegria. Enfim, se você não tem como escapar dela, ainda há um último conselho possível: reze. E, como acrescentaria Mario Quintana, por favor não venha me mostrar os originais.

Autor
Ernani Ssó se define como ?o escritor que veio do frio?: nasceu em Bom Jesus, em 1953. Era agosto, nevava. Passou a infância ouvindo histórias e, aos 11 anos, leu seu primeiro livro sozinho:Robinson Crusoé. Em 1973, por querer ser escritor, entrou para a Faculdade de Jornalismo, que deixou um ano depois.  Em sua estréia, escreveu para O Quadrão (1974) e QI 14,(1975), publicações de humor. Foi várias vezes premiado. Desenvolve projetos literários para adultos e crianças.

Comentários