Os mil tons, os sons e os dons geniais dos habitantes da Rua dos Andradas

Em cada esquina que sangra a Rua dos Andradas se encontra algo peculiar ou estranho ocupando um ou mais dos quadrados do local. Habitantes …

Em cada esquina que sangra a Rua dos Andradas se encontra algo peculiar ou estranho ocupando um ou mais dos quadrados do local. Habitantes eventuais, mas quase fixos, que se alojam nos cantos e recantos da rua mais nervosa de Porto Alegre. É um cego prometendo a felicidade que está justamente naquele bilhete de loteria que ele tem na mão para lhe vender. Ou um indiozinho (mandado pela mãe índia escondida mais adiante cuidando de mais uns cinco rebentos) pedindo um troco para comprar algum naco de comida. E agora pipocam as vendedoras de massageadores milagrosos, revolucionários, capazes de tirar qualquer dor por apenas R$ 10,00. Impossível atravessar a via sem reparar e até pensar na vida destes invasores/ocupantes da rua.
No início de uma tarde desta semana, na minha caminhada até o Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Rio Grande do Sul, que fica na Rua dos Andradas no número 1270 (13º andar), no tradicional edifício CarlosTorely, o que me obriga, vindo pela Avenida Independência, a cruzar sete das esquinas que cortam a famosa rua, detive-me um tempo maior a observar estes mil tons, os sons, seus dons geniais e os seres humanos. Antes de chegar na Rua Senhor dos Passos, onde ainda é Avenida Inpendendência, cruzam por mim diversas senhoras com aspecto de fino trato equilibrando sacolas repletas de compras recém-feitas em boutiques de alguma galeria. No muro na frente de um edifício enorme e tradicional fincado na Praça Dom Feliciano, um senhor aparentando não mais do que 60 anos, tenta arrumar umas 12 caixas de doces feitas sabe-se lá quando, que serão oferecidos na descida que logo se inicia.
Logo mais adiante, na esquina da Rua Doutor Flores, um guri de uns 20 e poucos anos arruma cordões de tênis de várias cores sobre um papelão e espalha sua mercadoria sobre a calçada, tornando mais estreita a opção de ir e vir dos pedestres. Num dos outros quadrados da Doutor Flores com Rua dos Andradas (ai, chega, vou passar a chamá-la de Rua da Praia mesmo), um homem com atitude suspeita ameaça com o olhar as mulheres bonitas que ousam cruzar na frente de seu corpo. Nesta esquina, é preciso cuidado porque existe o ponto de táxi, gente que atravessa arriscando a vida porque sinaleira não há, lotações que seguem do sentido das duas ruas e uma fila sempre imensa numa loja de fast food que avança num dos quadrados da Doutor Flores.
Antes de passar pela Rua Vigário José Inácio, que gosto de percorrer, às vezes, para destilar algumas orações na Igreja do Rosário, uma moça me atropela para entregar o cartão de um restaurante barato em que a comida a quilo é tão barata, mas tão barata, que me imaginei comendo aquilo. Quase na frente da Galeria Malcon (todos sabem onde ela fica, não?), um senhor que já deveria estar aposentado, em casa, descansando e cuidando dos netos, anuncia que tem as cocadas mais maravilhosas do planeta. E um cego jura que tem para vender o bilhete premiado de alguma loteria da vida (não entendo porque ele não compra então, para ser rico o resto da vida). A calmaria da Rua da Praia, antes do seu encontro com a Rua Marechal Floriano, é quebrada pelo vazamento de um cano de água que atrapalha e obriga a trocar de ponto o vendedor de óculos do Paraguai.
Mas a fauna e a flora mais estranha da população de Porto Alegre, com certeza, reúne-se no encontro da Rua da Praia com a Avenida Borges de Medeiros, no que se batizou de Esquina Democrática. Pois lá, disputam espaço, pedaço a pedaço, o gaúcho todo prateado que se finge de estátua e só se mexe se alguma moeda tilintar na caixa que repousa sobre os seus pés, e um doido, literalmente, anunciando que o fim do mundo está chegando, é nesta quinta-feira, e oferece umas revistas que podem salvar quem as manusear. Bem no meio da Esquina Democrática, duas dançarinas, bem desajeitadas, rebolam com uns CDs piratas nas mãos de uma banda de índios que se apresenta no local. Um cantor todo vestido de terno ensaia e arranha alguns tangos ao seu violão e seu som sofre interferência dos índios. E fechando este quadrado, tem um homem também como estátua, pintado de anjo branco, que faz alguma gracinha quando recompensado.
Na Rua 24 Horas, refestela-se no chão uma mãe índia, com um seio de fora alimentando um dos últimos filhos a quem deu à luz; Espalhados, protegidos por algo parecido com uma colcha ou canga, mais cinco pequenos índios e duas índias estendem as mãos mendigando o que alguém puder lhes dar. E quase chegando na Rua Uruguai, perto do Edifício Carlos Torely, onde se encerra a minha peregrinação, está instalada uma banda completa, com todos os instrumentos mais simples necessários para um show básico, como violão, triângulo, bateria, e uma moça com o cabelo cheio de tranças a desafinar no microfone. O mais espantoso é que umas 30 pessoas estacionam no local para dar ibope a tal banda e sua vocalista sem melodia.
Ufa, ainda bem que cheguei ao sindicato e não foi necessário estender meu passeio até a Rua General Câmara (Rua da Ladeira) ou até a Rua Caldas Junior, que é um espaço considerável de tipos bem estranhos. E que também não fui até o final da Rua da Praia, que termina somente na Rua General Salustiano. Mas o que seria de uma cidade sem os seus mil tons, os sons e os dons geniais dos seus habitantes?

Autor
Márcia Fernanda Peçanha Martins é jornalista, formada pela Escola de Comunicação, Artes e Design (Famecos) da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), militante de movimentos sociais e feminista. Trabalhou no Jornal do Comércio, onde iniciou sua carreira profissional, e teve passagens por Zero Hora, Correio do Povo, na reportagem das editorias de Economia e Geral, e em assessorias de Comunicação Social empresariais e governamentais. Escritora, com poesias publicadas em diversas antologias, ex-diretora do Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Rio Grande do Sul (Sindjors) e presidenta do Conselho Municipal dos Direitos da Mulher de Porto Alegre (COMDIM/POA) na gestão 2019/2021. E-mail para contato: [email protected]

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