A "missão" do Fortini

O velho Archymedes Fortini, do qual já quase ninguém mais fala, marcou o jornalismo antigo. É nome de rua no Centro da cidade por …

O velho Archymedes Fortini, do qual já quase ninguém mais fala, marcou o jornalismo antigo. É nome de rua no Centro da cidade por ter sido benfeitor da Santa Casa de Porto Alegre e do Hospital da Criança Santo Antônio. Não pára aí sua contribuição à cidade: entre as muitas outras, está o monumento ao Expedicionário no Parque Farroupilha.


Conheci Fortini quando fui trabalhar no Correio do Povo, em 1968. Já passava dos 80 anos, mais de 60 deles trabalhando no velho "Róseo". Não fora para casa, para curtir a aposentadoria, porque não quisera.
Em 1945, ao comemorar o cinqüentenário do Correio do Povo, Breno Caldas achou que devia recompensá-lo pelos serviços prestados. As relações de Fortini com os banqueiros da época tinham sido decisivas para angariar o financiamento que preservou o jornal da falência, quando Caldas Júnior morreu em 1913.


No dia de Santo Antônio, do qual era devoto, Fortini foi chamado ao gabinete de Breno Caldas, para receber a notícia: seria aposentado com os vencimentos integrais e ganharia uma viagem à Itália, incluída no roteiro a tão sonhada romaria ao túmulo do santo da sua predileção. 
Fortini só balbuciou um "obrigado" e voltou para a redação sem comentar nada com os colegas. Dali a instantes, o secretário da redação, Paulo de Gouvêa, avisou Breno Caldas que Fortini chorava copiosamente, debruçado em sua mesa, sem atender a ninguém.


Breno foi à redação e perguntou:


- O que há, Fortini?


A resposta foi um furacão. Fortini, que sempre tratava o diretor por senhor, levantou-se com o dedo indicador em riste e voltou ao "tu" dos tempos em que Breno Caldas era moleque e de vez em quando era trazido pela mãe para visitar o jornal.


- Tu não podes fazer isso comigo. Se teu pai fosse vivo, tu ias ver uma coisa?


Fortini, baixinho, Breno Caldas, de estatura elevada, a ameaça, vindo de baixo para cima, tornava a cena engraçada. A redação inteira parou, entre comovida e divertida, à espera do desfecho.


Breno Caldas, fingindo severidade, mal contendo o riso, disse entre dentes:


- Então, tu queres mesmo é trabalhar, não é?     
Fortini retomou imediatamente o cerimonioso "Sim, senhor, doutor Breno!".


"Pois bem", continuou Breno Caldas. "Vais trabalhar como nunca na tua vida. Primeira missão: Itália. Me traz uma reportagem completa sobre o túmulo de Santo Antônio. Ai de ti que tu não tragas. Olho da rua!"
Feliz da vida, Fortini respondeu solene: "Sim, senhor, doutor Breno!"


Na volta da missão trouxe o material que reuniu em livro - O poder da fé em Santo Antônio - após tê-lo publicado nas edições dominicais do Correio do Povo. E continuou trabalhando por mais 20 anos, até seis meses antes de morrer, em 13 de junho de 1973. Por coincidência, dia de Santo Antônio, o santo da sua devoção.

Autor

Jayme Copstein é jornalista, com atividade em jornal e rádio desde 1943,com passagens pelos principais veículos de Porto Alegre. Trabalhou 22 anos no Grupo RBS como apresentador de programas e comentarista de opinião da Rádio Gaúcha, e atualmente é colunista do jornal O Sul e apresentador do programa 'Paredão', na Rádio Pampa. Detentor de vários prêmios, entre eles, Medalha de Prata (2º lugar) no Festival Internacional do Rádio de Nova York (1995), em 1997 publicou "Notas Curiosas da Espécie Humana" (AGE). Seu livro mais recente é "A Ópera dos vivos", editado em janeiro de 2008.

Comentários