Da primeira vez em que me assassinaram

Por Márcia Martins

Da primeira vez em que me assassinaram, como escreveu nosso poeta Mario Quintana, perdi um jeito de sorrir que eu tinha. Foi em maio de 2003, quando meu mano caçula, o Dedé, Dédi ou Luli, morreu precocemente. E depois, a cada vez que me mataram, foram levando qualquer coisa minha. Já em junho de 2011, quando mamis Mirthô faleceu, se foi uma maneira leve, gostosa e esperançosa de gargalhar e encarar a vida. Desde então, com estas duas perdas, o Natal também não tem mais o mesmo envolvimento, não produz mais o mesmo prazer e nem me emociona tanto.

Mas, como insiste a música, "então é Natal", e eu me pego a lembrar de cenários de Natais passados, com o Dedé contando sempre alguma novidade e rindo muito das minhas piadas, a maioria sem graça, com aquela sua maneira muito peculiar que sorrir com o olhar apertadinho. Ou me recordo da Mirthô, lá pela metade de novembro, indagando dos filhos e filhas quais seriam os pratos da ceia, já que até um determinado ano, o Natal era comemorado no apartamento dela no bairro Bom Fim. E insistindo em saber quais presentes os filhos, filhas, netos e netas gostariam de ganhar.

Tornou-se hábito, após esses dois assassinatos, e outros menores posteriores, passar o Natal e a virada do ano novo na casa do meu irmão, cunhada/mana e afilhado em Butiá. Muito mais, no meu caso, que não sou católica, para reunir afetos, distribuir afagos e se lambuzar com as delícias gastronômicas preparadas pelo mano Nando e cunhada Flávia, do que pela troca de presentes ou pelo nascimento de Jesus Cristo. Vislumbro uma excelente ocasião para relaxar, colocar os assuntos em dia, passear na bucólica cidade e bebericar uns goles de cerveja ou espumante.

Com o passar dos anos, os netos e as netas da mamãe Mirthô formaram suas novas famílias. E, consequentemente, é bem complicado conseguir reunir todos, todas e todes na ceia natalina em Butiá. Situação compreensível visto que nas "calhas de roda, gira a entreter a razão, esse comboio de vida, que se chama coração", assim como já narrou Fernando Pessoa no poema "Autopsicografia", o que significa que novas relações, emoções e configurações podem e devem ser formadas. O que importa, ainda que sem a presença de todos familiares, é preservar a fraternidade e o amor cultivados pela mãe, em qualquer ocasião.

Então já que é Natal, desejo que cada um faça nascer dentro de si, emoções respaldadas na empatia, na humildade, na solidariedade, no amor sincero e sem esperar nada em troca, na crença de que todos merecem as mesmas condições dignas de vida e que a bondade não precisa ser exercida apenas nos dias 24 e 25 de dezembro.

Autor
Márcia Fernanda Peçanha Martins é jornalista, formada pela Escola de Comunicação, Artes e Design (Famecos) da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), militante de movimentos sociais e feminista. Trabalhou no Jornal do Comércio, onde iniciou sua carreira profissional, e teve passagens por Zero Hora, Correio do Povo, na reportagem das editorias de Economia e Geral, e em assessorias de Comunicação Social empresariais e governamentais. Escritora, com poesias publicadas em diversas antologias, ex-diretora do Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Rio Grande do Sul (Sindjors) e presidenta do Conselho Municipal dos Direitos da Mulher de Porto Alegre (COMDIM/POA) na gestão 2019/2021. E-mail para contato: [email protected]

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