Histórias nas Copas

Por Flávio Dutra

Considero inevitável neste período falar de Copa do Mundo, até para escapar das chatices do noticiário de Brasília. Assim, vasculhei os meus arquivos e encontrei histórias saborosas - muitas -, escabrosas, algumas - e até dramáticas , vividas durante os mundiais de futebol. 

Participei diretamente de duas Copas, a primeira em 1994 nos Estados Unidos como jornalista pela Rádio Gaúcha e a outra em 2014 como secretário de Comunicação da Prefeitura de Porto Alegre. Na de 94, teve um momento em que pensei que não chegaria vivo para a Copa. E aí já relato a primeira história, categoria dramática. No voo intercontinental, com destino a Dallas, ainda no tempo da saudosa Varig, tive uma queda de pressão tão forte que achei que ia retornar ao Brasil num pijama de madeira, encoberto pelo pavilhão nacional e da RBS. Em frações de segundos passou o filme da minha vida, um reles curta metragem, e eu me desesperei só de pensar que não veria mais meus filhos.  O atendimento dos comissários de bordo, entretanto, foi eficiente e ainda contei com a assistência de uma verdadeira junta médica, um grupo de profissionais paulistas que viajava para um congresso nos Estados Unidos. Logo me recuperei, mas o companheiro de viagem e de uma jornada de 52 dias em Dallas não sossegou. A cada movimento meu, nos desconfortáveis bancos da classe econômica, o engenheiro Gilberto Kussler tinha um sobressalto. Mas sobrevivemos os dois.

Mais dramático foi o que ocorreu no dia 7 de julho de 1994, na véspera do jogo Brasil x Holanda. Uma rebelião no hospital da Penitenciária Estadual fez Porto Alegre viver 24 horas de terror, com a fuga alucinada dos detentos, comandados por Dilonei Melara e libertados pelas autoridades sob a condição de pouparem os reféns. Tão logo deixaram a Penitenciária em três carros começou uma perseguição, não menos alucinada, da polícia, acompanhada de perto pela Imprensa em geral e pela Rádio Gaúcha em especial, com seus melhores repórteres à época, entre eles Diego Casagrande, Oziris Marins e Felipe Vieira.

A rebelião ocorreu numa sexta-feira e estendeu-se por uma das noites mais frias de 1994, daí não ter provocado outras vítimas na passagem do comboio frenético de presidiários, policiais e jornalistas por algumas das principais ruas e avenidas da cidade. Devido ao horário, início da noite, estávamos mais mobilizados nos Estados Unidos do que na sede em Porto Alegre - era véspera da disputa  pelas quartas-de-final e toda a equipe da RBS aportara em Dallas para o jogo do dia seguinte. Por isso, foi o Pedro Ernesto, dentro do Show dos Esportes, quem começou ancorando a movimentação da reportagem. 

Os presidiários começaram a fuga pelo Partenon, seguiram para o Jardim Botânico e, como conhecia bem a região por ter morado durante mais de 20 anos no Alto Petrópolis, passei a assoprar ao Pedro referências sobre  localização do comboio. Até que um dos carros dos bandidos enveredou para a rua Ivo Corseuil e na esquina da rua Guararapes ocorreu um enfrentamento com a polícia, resultando num cerrado tiroteio noite adentro na pacata rua. Foi quando caiu a ficha para mim. Meu pai, o coronel Dastro como era conhecido, morava na Ivo Corseuil e tinha por hábito, apesar da idade - mais de 70 anos; faleceu aos 95 lépido e faceiro - dar um passeio noturno. De imediato, graças a um sistema instalado pela engenharia da Gaúcha, disquei para a casa como se fizesse uma ligação local. Primeira ligação e nada. E eu virado, numa pilha de nervos. Segunda chamada e depois de vários toques, finalmente o coronel Dastro atende e logo depois de me identificar, ele soltou o verbo.

- Olha, tenho boas novidades. A Anita aceitou o namoro e vamos marcar a data do casamento.

O velho guerreiro estava in Love. Viúvo, o coronel reencontrara uma namorada antiga e alguns anos mais jovens, fizera a corte, ela aceitara e agora celebravam a renovação do amor.

Enquanto isso, a meia quadra da morada da Ivo Corseuil, o tiroteio seguia firme e o nosso coronel nem aí. Devo ter pronunciado um palavrão quando interrompi o relato do enamorado.

- Pai, tu não tá ouvindo a confusão aí fora?

- Pois é, eu ouvi umas sirenes, mas não sei do que se trata. Como eu estava falando, a Anita...

Interrompi de novo e agora fui enérgico.

- Depois tu me conta do namoro. Agora fecha toda a casa e te protege que presidiários estão tiroteando com a polícia aí perto.

É incrível como eu, mais de 5 mil quilômetros distante dos acontecimentos, sabia mais do que quem estava ao lado do cenário do conflito. Mas essa é a realidade do que aconteceu naquela noite. Meu pequeno drama, pequeno diante da magnitude dos acontecimentos, terminou na própria sexta-feira, depois que mobilizei os irmãos em Porto Alegre para darem um apoio ao coronel apaixonado e desatento.

Mas a perseguição seguiu adiante, pela madrugada e toda manhã de sábado. Os bandidos se refugiaram no Hotel Plaza San Raphael e ficamos na expectativa para o término da confusão, quando mais não seja porque no início da tarde começaria o grande jogo Brasil x Holanda. Um prenúncio de que os astros começavam a se alinhar naquele sábado foi que meia hora antes da bola rolar os fugitivos decidiram se render, a transmissão da rádio ocorreu normalmente e o Brasil conquistou uma grande vitória por 3 x 2 sobre os holandeses, jogo decidido em uma cobrança de falta magistral pelo lateral Branco.

(Voltaremos).

Autor
Flávio Dutra, porto-alegrense desde 1950, é formado em Comunicação Social pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs), com especialização em Jornalismo Empresarial e Comunicação Digital. Em mais de 40 anos de carreira, atuou nos principais jornais e veículos eletrônicos do Rio Grande do Sul e em campanhas políticas. Coordenou coberturas jornalísticas nacionais e internacionais, especialmente na área esportiva, da qual participou por mais de 25 anos. Presidiu a Fundação Cultural Piratini (TVE e FM Cultura), foi secretário de Comunicação do Governo do Estado e da Prefeitura de Porto Alegre, superintendente de Comunicação e Cultura da Assembleia Legislativa do RS e assessor no Senado. Autor dos livros 'Crônicas da Mesa ao Lado', 'A Maldição de Eros e outras histórias', 'Quando eu Fiz 69' e 'Agora Já Posso Revelar', integrou a coletânea 'DezMiolados' e 'Todos Por Um' e foi coautor com Indaiá Dillenburg de 'Dueto - a dois é sempre melhor', de 'Confraria 1523 - uma história de parceria e bom humor' e de 'G.E.Tupi - sonhos de guri e outras histórias de Petrópolis'. E-mail para contato: [email protected]

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